Casa d`Avenida. Setúbal, Portugal.

Concrete reality | 2023

Texto de Luísa Santos

Concrete reality, de Mónica Capucho (1971, Lisboa) coloca oconcretismo ao lado da realidade, uma relação impossível na definição de arteconcreta. A arte concreta, na história da arte, é arte abstrata, livre dequalquer interpretação ou representação da realidade e sem qualquer significadosimbólico. E é precisamente a partir do questionamento de relações e deassunções da história da arte que a história desta exposição se desenha. Estetexto adota o percurso de Concrete reality, na Casa d’Avenida, paracontar as suas partes.

I.Concrete / reality (Piso térreo)

As duas palavras que formam o título da exposiçãorecebem-nos logo na primeira sala, em díptico que, por sua vez, é acompanhadopor mais nove dípticos, um tríptico e ainda uma pintura única. Os dípticos e ostrípticos são formas muito usadas ao longo da História da Arte que, tendocomeçado com a pintura medieval, continuaram no Renascimento, tendo ficadoparticularmente conhecidas na arte religiosa, em cenas Bíblicas, retratosseculares, e em representações da Santa Trindade. Regra geral, cada parte dodíptico ou do tríptico estava presa à outra. Já na arte moderna econtemporânea, os dípticos e os trípticos libertaram-se das conotaçõesreligiosas e, formalmente, um do outro, estando, muitas vezes soltos entre si ecom dimensões diversas.

Se pensarmos na raiz etimológica da palavra, um díptico (em grego: δίπτυχο di = "dois" + ptychē = "dobra") é qualquerobjeto que tenha duas placas planas ligadas entre si. Talvez seja esta a definição mais próxima dosdípticos e dos trípticos do piso térreo da Concrete Reality. Organizadaem objetos compostos por duas placas planas ligadas entre si, a salaapresenta-nos um conjunto de diálogos que operam como convites. Numa primeirainstância, impelem-nos a traduzi-las para além das palavras que os compõem:como é que parecerá esta monochromatic / choice? Num segundo momento,convidam-nos a questionar o significado de cada uma das palavras porque, emconjunto, confrontam-se: subject / matter; artificial / connection. Já numterceiro momento, ou para alguém para quem a história da arte seja matériafamiliar, será inevitável pensar em cada uma destas palavras como conceitoschave da história da arte ocidental. Contudo, perante a junção de cada umadestas palavras em dípticos e trípticos, parecemos ser levados a perguntar: quesentidos têm / podem ter estes conceitos que têm sido apresentados e validadosao longo daquilo que entendemos como história da arte?

II.  Isto não é uma legenda (Sala 1, Primeiro Piso)

Os museus de arte, tal como os livros de históriada arte, regra geral, fazem acompanhar cada trabalho artístico ou imagem domesmo com uma legenda descritiva contendo título, dimensões, meio e, quandoaplicável, a proveniência ou coleção na qual se insere. As legendas têm assim,um carácter informativo e secundário.

Em Concrete Reality, o trabalho artístico ea legenda são a mesma e, como tal, ambas são protagonistas. Tal como a pintura LaTrahison des Images (1929), de René Magritte, mais conhecida como Cecin’est pas une pipe, há uma subversão dos modos tradicionais de representarlinguisticamente uma imagem. No caso da pintura de René Magritte, a imagem deum cachimbo é acompanhada por uma frase que diz que aquilo que vemos (ceci –isto, que é uma imagem de um cachimbo) não é aquilo que julgamos ver (n’est pasune pipe – não é um cachimbo). Nas pinturas de Mónica Capucho, o exercício decontradição avança mais um passo: o que aparece descrito em palavras não temuma tradução em imagem. OIL ON LINEN não se faz acompanhar de uma pintura aóleo sobre linho, do mesmo modo que SEASCAPE não é acompanhada por qualquerpaisagem marinha ou a PERSPECTIVE se apresenta com algum tipo de pintura ou deescultura com perspetivas. Aquilo que podemos ver são as palavras pintadassobre madeira. Ou seja, estamos perante pinturas, mas não as pinturas queesperamos ver perante aquilo que lemos. Enquanto na obra de Magritte, aspalavras não são tanto uma descrição retórica, mas mais uma subversão darepresentação para dizer que as palavras e a linguagem podem ser arbitrárias,convencionais e circunstanciais (Foucault, 1983:5), no caso de Mónica Capucho,a contradição existe não só nesse nível, mas também para perverter a culturaocidental que é, essencialmente, assente em imagens. Por outras palavras, emúltima instância, deixa o trabalho da imaginação – enquanto criação de imagens– para os públicos. Ou, para os mais atentos, convida-os a fazer os pares comobjetos que existem no espaço, como um piano preto acompanhado por BLACK ONBLACK.

III.Site-specific (Salas 2, 3, 4 e 5, Primeiro Piso)

Muito do trabalho de Mónica Capucho existeconfortavelmente em qualquer espaço, de um cubo branco a uma casa do SéculoXVIII. Ou seja, não é, necessariamente, pensada exclusivamente para um espaçoespecífico. O glossário da Tate informa que o termo site specific

“refere-se a um trabalho artístico desenhado especificamentepara uma localização em particular e que tem uma relação com esse lugar.Enquanto trabalho site-specific, é desenhado para um local específico e, se forremovido do mesmo, perde toda ou parte substancial do seu significado. O termosite-specific é, regra geral, usado para instalação (instalação site-specific);e para land art que é, quase por definição, site-specific”.[1]

Contudo, a capacidade de mutabilidade dos trabalhosde Mónica Capucho com os espaços existe pela relação de mutualidade que adotacom os mesmos, independentemente das características de cada espaço. Ou seja,se à primeira vista não parece ter sido pensada exclusivamente para um espaçoespecífico, uma leitura mais atenta descobrirá que as suas pinturas estão emconstante diálogo entre si e, mesmo quando não são pensadas a priori para as especificidadesde cada espaço, são sempre instaladas em diálogo ativo com os espaços quehabitam.

DIVIDING LINE, na parede esquerda da segunda salado primeiro piso, é composta por uma pintura sobre tela sem grade e uma ripa demadeira, na qual se lê “dividing line”, na horizontal. Os dois elementos estão separados por um pequeno espaço, separação que ésugerida para a relação interior e exterior da Casa d’Avenida, nesta sala queestá virada para a Avenida que dá o nome à casa. Já a colocação da pintura SELF-SUFFICIENTnuma ripa de cimento de cerca de cinco por oitenta centímetros na pequenaparede na passagem, entre duas portas, da terceira para a quarta sala doprimeiro piso, questiona a sua autossuficiência: será que teria o mesmosignificado e força noutro espaço da mesma casa? A quarta sala, coberta porazulejos azuis do tempo da construção da casa, foi ocupada por várias barras demadeira pintada, cimento e pedra com a palavra BLUE. A referência à cor dosazulejos é óbvia, mas subverte a ideia de legenda ou de descrição na medida emque a única referência escrita não acrescenta nada aquilo que podemos ver nosazulejos. A quinta sala do primeiro piso oferece, possivelmente, o diálogo maisclaro em duas instâncias – com a própria obra (na verdade, um monólogo) e com oespaço. Na parede do lado direito podemos ler SELF-CONTAINED numa molduraquadrada em cimento, de dimensões contidas, que aparece junto a uma janelaquadrada.

IV.Epílogo (Sala 6, Primeiro Piso)

A última sala da exposição poderia ser lida comouma conclusão na qual são oferecidas palavras-chave simultaneamente da históriada arte e das relações humanas. A sala surge habitada por várias barras epequenas peças de materiais como o cimento, madeira e pedra com palavraspintadas a preto, branco, cinzento e azul.

No chão, palavras como VISUAL / MATTER / VIEW /REALISTIC / COLLECTIVE / SOLUTION / MEMORIES / UNIQUE / TEMPORARY / WORD /MIXTURE poderiam ser facilmente usadas em descrições de obras de arte da mesmamaneira que poderiam ser aplicadas em textos do domínio das ciências sociais ehumanas. Na verdade, são palavras que aplicamos no dia-a-dia com regularidadepara descrever sensações e situações. O que esta fluidez entre camposdisciplinares e contextos sugere é que, afinal, a arte, como as imagens e aspalavras, não existem separadamente das relações humanas. Pelo contrário,nascem delas e especulam sobre outras maneiras de serem vividas eexperienciadas.

__

[1] Tradução do inglês para o português pela autora. https://www.tate.org.uk/art/art-terms/s/site-specific acedido a 11 de Setembro 2023.


Concrete reality

Text by Luísa Santos

Concrete reality, by Mónica Capucho (1971, Lisbon)places concretism alongside reality, an impossible relationship in thedefinition of concrete art. In the history of art, concrete art is abstractart, free from any interpretation or representation of reality and without anysymbolic meaning. And it is precisely from the questioning of relationships andassumptions in the history of art that the story of this exhibition is drawn.This text takes the route of Concrete reality, at Casa d'Avenida, to tell itsparts.

I. Concrete / reality (Ground floor)

The two words that form the exhibition's title greetus in the very first room, in a diptych that, in turn, is accompanied by nineother diptychs, a triptych and a single painting. Diptychs and triptychs areforms that have been widely used throughout the history of art. They began inmedieval painting and continued into the Renaissance, becoming particularlywell known in religious art, in Biblical scenes, secular portraits andrepresentations of the Holy Trinity. As a general rule, each part of thediptych or triptych was attached to the other. In modern and contemporary art,however, diptychs and triptychs have been freed from their religiousconnotations and, formally, from each other, often being detached from eachother and having different dimensions.

If we think about the etymological root of the word, adiptych (in Greek: δίπτυχο di = "two" + ptychē = "fold") isany object that has two flat plates connected together. This is perhaps the closestdefinition to the diptychs and triptychs on the ground floor of ConcreteReality. Organised into objects made up of two flat plates connected together,the room presents us with a series of dialogues that act as invitations.Firstly, they encourage us to translate them beyond the words that make themup: how does this monochromatic / choice look? Secondly, they invite us toquestion the meaning of each of the words because, together, they confront eachother: subject / matter; artificial / connection. In a third moment, or forsomeone for whom art history is a familiar subject, it will be inevitable tothink of each of these words as key concepts in the history of Western art.However, faced with the combination of each of these words in diptychs and triptychs,we seem to be led to ask: what meanings have / can have these concepts thathave been presented and validated throughout what we understand as art history?

II. This is not a legend (Room 1, First Floor)

Art museums, like art history books, generallyaccompany each artwork or image of it with a descriptive caption containing thetitle, dimensions, medium and, where applicable, the provenance or collectionin which it is included. The captions have therefore an informative and asecondary character.

In Concrete Reality, the artwork and the caption areone and the same and, as such, both are protagonists. Like René Magritte'spainting La Trahison des Images (1929), better known as Ceci n'est pas une pipe, there is a subversion of the traditionalways of linguistically representing an image. In the case of René Magritte'spainting, the image of a pipe is accompanied by a sentence saying that what wesee (ceci - this, which is an image of a pipe) is not what we think we see(n'est pas une pipe - it's not a pipe). In Mónica Capucho's paintings, theexercise in contradiction goes one step further: what is described in words isnot translated into an image. OIL ON LINEN is not accompanied by an oilpainting on linen, in the same way that SEASCAPE is not accompanied by anyseascape or PERSPECTIVE is presented with some kind of painting or sculpturewith perspectives. What we can see are words painted on wood. In other words,we are looking at paintings, but not the paintings we expect to see from whatwe read. While in Magritte's work, the words are not so much a rhetoricaldescription as a subversion of representation to say that words and languagecan be arbitrary, conventional and circumstantial (Foucault, 1983:5), in MónicaCapucho's case, the contradiction exists not only on that level, but also topervert Western culture, which is essentially based on images. In other words,she ultimately leaves the work of imagination - as the creation of images - tothe public. Or, for the more attentive, she invites them to pair up withobjects that exist in the space, such as a black piano accompanied by BLACK ONBLACK.

III. Site-specific (Rooms 2, 3, 4 and 5, First Floor)

Much of Mónica Capucho's work exists comfortably inany space, from a white cube to an 18th century house. In other words, it's notnecessarily designed exclusively for a specific space. The Tate glossary statesthat the term site specific

"refers to an artwork designed specifically for aparticular location and which has a relationship with that place. As asite-specific work, it is designed for a specific location and, if removed fromit, loses all or a substantial part of its meaning. The term site-specific isgenerally used for installation (site-specific installation); and for land art whichis, almost by definition, site-specific."[2]

However, the ability of Mónica Capucho's works tochange with the spaces exists because of the mutual relationship she adoptswith them, regardless of the characteristics of each space. In other words, ifat first glance it doesn't seem to have been designed exclusively for aspecific space, a closer look will reveal that her paintings are in constantdialogue with each other and, even when they are not designed a priori for thespecifics of each space, they are always installed in active dialogue with thespaces they inhabit.

DIVIDING LINE, on the left wall of the second room onthe first floor, consists of a painting on canvas without a grid and a woodenslat, which reads "dividing line" horizontally. The two elements areseparated by a small space, a separation that suggests the relationship betweenthe interior and exterior of Casa d'Avenida, in this room that faces the avenuethat gives the house its name. The placement of the SELF-SUFFICIENT painting ona concrete slat measuring around five by eighty centimetres on the small wallin the passage between two doors from the third to the fourth room on the firstfloor questions its self-sufficiency: would it have the same meaning andstrength in another space of the same house? The fourth room, covered in bluetiles from when the house was built, was occupied by several bars of paintedwood, cement and stone with the word BLUE on them. The reference to the colourof the tiles is obvious, but it subverts the idea of a legend or description inthat the only written reference adds nothing to what we can see on the tiles.The fifth room on the first floor offers possibly the clearest dialogue in twoinstances - with the work itself (actually a monologue) and with the space. Onthe right-hand wall we can read SELF-CONTAINED in a square cement frame, of containeddimensions, which appears next to a square window.

IV. Epilogue (Room 6, First Floor)

The last room of the exhibition could be read as aconclusion in which keywords are offered from both art history and humanrelations. The room appears inhabited by various bars and small pieces ofmaterials such as cement, wood and stone with words painted in black, white,grey and blue.

On the floor, words such as VISUAL / MATTER / VIEW /REALISTIC / COLLECTIVE / SOLUTION / MEMORIES / UNIQUE / TEMPORARY / WORD /MIXTURE could easily be used in descriptions of works of art in the same waythat they could be applied to texts in the social sciences and humanities. Infact, they are words that we use regularly in everyday life to describesensations and situations. What this fluidity between disciplinary fields andcontexts suggests is that art, like images and words, does not exist separatelyfrom human relationships. On the contrary, they are born from them andspeculate on other ways of living and experiencing them.


[1] Tradução do inglês para o português pela autora. https://www.tate.org.uk/art/art-terms/s/site-specific acedido a 11 de Setembro 2023.

[2] Translationfrom English to Portuguese by the author. https://www.tate.org.uk/art/art-terms/s/site-specific accessed onSeptember 11,å 2023.

Using Format