SENSE & SENSIBILITY

Margarida P. Prieto


Abstract. This paper is about the relation visible/legible implied in the painting/in-scripture gesture, characteristic of paintings by Mónica Capucho. It also indicates the creativity games underlying all possibilities of pictorial accumulation by layers, and the mise-en-abyme made visible throughout site-specific installations.
Keywords: painting, visible/legible, installation, grid, game.

Resumo. Este artigo trata a relação visível/legível proposta no pintar/inscrever que caracteriza a pintura de Mónica Capucho. Aponta ainda os jogos criativos do seu trabalho: as possibilidades pictóricas da sobreposição e o mise-en-abyme da grelha, visível nas instalações site-specific.
Palavras-chave: pintura, visível/legível, instalação, grelha, jogo.


Introdução
Este artigo incide sobre a pintura de Mónica Capucho. Nascida em Lisboa em 1971, está representada nas galerias Quadrado Azul e CC – Arte contemporânea. O seu percurso de aprendizagem artística inicia-se na escola ARCO em 1988. Entre 1990-1993 reside em Bruxelas onde faz o curso intensivo de pintura na Escola de Artes Plásticas ALPACA e um estágio com o escultor Francis Tondeur. Em 1998, licencia-se em Pintura pela FBA-UL.Figura 1. Objective and intentional (da série Objective paintings)2006, técnica mista, 30x45x6cm.




1. Marca d’água
A aplicação de vernizes (brilhantes/baços) sobre o mesmo pigmento garante-lhe plasticidades distintas, nomeadamente a sensação ocular de profundidade e/ou superfície que abre o espaço da perspectiva na pintura. Este método pode ser pensado como “marca d’água” – termo originalmente aplicado à folha de papel para designar o desenho visível à transparência, que resulta das diferentes densidades e espessuras dessa folha. É “marca” pela aplicação sistematizada tornada estratégia plástica expressiva (Telles de Menezes, 2009, p.8). É “d’água” pela associação ao molhado, à tinta fresca que o brilho convoca, por oposição e contraste com a tinta mate, seca e opaca. O brilhante é reflexivo, luminoso, profundo. O mate tem características de superfície, de primeiro plano. Justapostos iludem profundidade. “Marca d’água” é, ainda, metáfora para as relações finura/espessura, bi/tri dimensionais, plano/saliência, postas em constante diálogo na sua pintura. Nos caracteres – cujo corpo da letra é corpo de tinta, corpo em espessura conseguido pela densidade pastosa do médium – cada letra, termo, frase salienta-se na superfície de representação (Figura 6) e, paralelamente, também a espessura da grade acrescenta uma dimensão escultural ao pintado.


Figura 1. Objective and intentional (da série Objective paintings)2006, técnica mista, 30x45x6cm.
<!--[if !vml]-->Colecção particular. Fotografia da artista.
2. “The right combination of different elements can provoke a feeling of completeness”. Sense & sensibility (título tomado a Jane Austin) indica as duas características definidoras deste jogo criativo. A articulação entre a sensibilidade, propriamente sensitiva, dos sentidos da percepção, e o sentir enquanto pathos (das paixões, dos gostos, dos desejos) é doseada e reflexiva. É doseada a capacidade interferencial da inscrição na percepção do pictural, pela introdução de um enunciado na superfície pictórica, que sublinha ou desvia sentidos e influência, indica, dirige e manipula o observador. É reflexiva porque joga com os campos imagéticos próprios de cada uma das suas componentes, numa contaminação essencial que faz reverberar o visível no legível, e vice-versa. A linguagem abre o seu campo imagético: articulando-o na e como pintura, amplia a experiência de fruição.

Figura 2. Objective paintings, 2006, técnica mista, dimensões variáveis de montagem.Colecção particular. Fotografia da artista.
3. “In my mind the idea of an organizational structure is continually growing”Em Objective paintings (Figura 1 e Figura 2) os enunciados – irrepetíveis – obedecem à fórmula da dupla adjectivação. Inscrição/fundo são articulados segundo os contrastes fundamentados da teoria das cores.Esta instalação implica uma organização espacial ortogonal – opção recorrente – e releva de uma outra figura geométrica: a grelha. Construída no afastamento que individua e demarca cada peça, no desenho branco da parede/suporte, passa de esquema de organização (criado na manutenção das distâncias entre as peças) a figuração pictural, propondo-se como mise-en-abyme. Contudo, Reason from within recusa múltiplos enquadramentos: dá a ver-se simplesmente, ou antes, infinitamente (Figura 3).A inscrição pintada congrega funções de enunciado, legenda e título. Ao contrário de outros trabalhos (onde ocupa a posição central e destacada como figura principal, assunto da pintura), aqui coloca-se no limite: afasta-se do protagonismo, desloca-se discretamente em direcção ao invisível. A elaboração cuidadosa desta composição (posição, linguagem, idioma) actua directamente na percepção visual: o olhar oscila entre ver e ler.

Figura 3. Reason from within2007, técnica mista, 100x100cm.Colecção particular. Fotografia da artista.
4. “Geometric patterns can evoke a rational need to escape from the reality”A figuração geometrizada da superfície espessa-se por camadas sucessivas de tinta, que se sobrepõem sem se cobrir totalmente. O corpus pictórico constrói-se pelo excesso deste fazer, nesta acumulação por layers. A máscara (dispositivo técnico) possibilita o jogo (estrutural) mostrar/esconder. Paralelo à própria lógica do desejo, do jogo erótico (ocultar/exibir), e como estrutura de manifestação da verdade, este jogo é o de toda a criação, na medida em que entre guardar e revelar, entre esconder e pôr em evidência, cria-se expectativa e curiosidade no observador.O tempo é imprescindível neste fazer pintura, neste escrever pictórico. Um último gesto processual inscreve: a pasta preenche cada traço exigindo precisão e rigor na aplicação. Acresce ao fundo geometrizado e faz crescer “qualquer coisa” na pintura. Este “qualquer coisa” é o ampliar da pintura pela articulação cores/palavras: vai exigir um tempo para ver que inclui o tempo de ler. Isoladas, as frases são statments. Como pintura surpreendem: cada pintura parece dizer o mesmo mas mínimas alterações garantem um dizer outro.A repetição é, aqui, da ordem da alteração: repete-se para ficar diferente, para individuar. Na aparente similitude apreende-se a fórmula e, simultaneamente, percepciona-se o que individua: um jogo de estratégias subtis altera o mesmo em direcção ao diferente. Declinações, variações, desvios, repetições introduzem-se na regra como estratégia criativa e/ou de representação desta encenação da ordem.


Figura 4. Origina e Similar (da série “Original/forgery”), 2006, técnica mista, 40x45x4cm + 40x45x4cm.Colecção da artista. Fotografia da artista.
5. “Emotions follow a complex set of tensions between concept versus image”O re-dobrar/des-dobrar do real é uma problemática antiga. A série original/copy (Figura 4), paradigmática do jogo das aparências, ficciona a cópia pela repetição. Da ordem da alusão (eco da oralidade, reflexo da visibilidade), a cópia é pensada como re-figuração – como repetição da representação primeira – como captura da aparência do que é autêntico.Todas as pinturas têm igual presença, importância e cuidado na representação. Contudo, a inscrição remete-as para planos distintos, planos que são critérios de avaliação, de julgamento (múltiplo/original, ilusório/real, falso/verdadeiro, repetido/singular, enganador/autêntico, representação/presentação, cópia/modelo). Este envio perverso é uma artimanha da linguagem. O espaçamento horizontal separa as “original” (em cima) das “copy” (em baixo); acentua o jogo de antónimos: por cima significa superiormente colocado em relação a, que evidencia metáforas. Por cima é o espaço celestial, o mundo elevado das ideias. Alude a Platão, que coloca o modelo e a cópia nos antípodas um do outro. Por baixo, num jogo sinonímico, estão os enunciados que duplicam, repetem, ecoam, reflectem o modelo como outro.
6. “Different sensibility comes from an intuitiveness founded in the imperfections of our mind”Duas fórmulas dividem a representação dos enunciados: Monocromática (Figuras 1, 4 e 5) – cada termo transparece num apagamento que dá lugar ao sentido: a leitura é fácil – Ou policromática (Figura 5) – a plasticidade sobrepõe-se à legibilidade (Lyotard, 1971, p.79). No monocromatismo absoluto (Figura 6), a letra camufla-se, os enunciados dão-se a ver/ler pelos jogos transparente/opaco das tintas e reflexão/absorção da luz/sombra (própria e projectada) dos relevos.

Figura 5Original (pormenor), (da série “Original/forgery”), 2006, técnica mista, 40x45x4cm.Colecção da artista. Fotografia da artista.


Figura 6. knowledge (da série “Words”), 2005, óleo sobre tela, 30x60x4cm.
Colecção da artista. Fotografia da artista.


Conclusão
Na pintura de Mónica Capucho perpassa um sentido objectual que reside no rigor de um fazer táctil que dá a ver, e a sentir pelo olhar, o jogo das texturas, dos relevos, dos brilhos. Equaciona figuração geometrizada e inscrição pintada na representação/ apresentação da pintura. À morfologia das letras (direcções, curvas, distâncias e relações-entre, que as individuam) a artista aplica uma fórmula: o quadrado enforma o desenho numa nova tipo-grafia. No primeiro plano, cada termo transparece em direcção ao visível para logo desaparecer no lugar do significado. Do tratamento plástico destes caracteres depende a facilidade/dificuldade da leitura: quando a escrita se encena pintura, o enunciado dilui-se na sua morfologia pintada, no corpo espesso da tinta, no irreconhecível.


Referências
CAPUCHO, Mónica: www.mónicacapucho.com
LYOTARD, Jean-François, Discours Figure, Paris, ed. Klincksieck, coll. d’esthétique, 1971 (1ª edição). ISBN : 2 252 03368 2.
TELLES DE MENEZES, Salvato, Introdução, in Under deconstruction: Mónica Capucho/ De la expresíon al contenido: Ana Sério, Valência, Edições IVAM, 2009. ISBN: 978 8448253431
M.P. Prieto - Ema M.
12/2011


BANDED APPARATUS & PAPERWORKExposição (dupla) individual de pintura de Mónica CapuchoGaleria Dois Paços, Torres VedrasAbril/Maio de 2012
 Mónica Capucho é uma artista de uma enorme coesão na sua proposta pictórica. No seu trabalho, a poïesis – quer dizer, a capacidade criativa – dá a ver-se como pintura. Uma pintura em potência porque traz consigo enunciados que a carregam de significados. Este carregar é como uma carga, uma força, que se inscreve como linguagem mas ultrapassa em muito a formulação linguística. Ultrapassa pelo gesto com que se inscreve, no próprio pintar de cada letra, na espessura de tinta que sobressai da superfície, do pigmento escolhido e na íntima relação de acumulação de enunciados linguístico e pictórico (seguindo os termos da semiologia).Banded Apparatus é, antes de mais, uma proposta transtextual uma vez que relaciona o texto (linguagem), o pintado (pintura) e o ritmo (música): o texto, pela inscrição vertical em cada pintura a destacar cada letra de uma frase tipo (número cor forma); o pintado, como meio escolhido pela artista para essa inscrição; o ritmo na proposta sequencial da instalação.É na matriz da frase (número, cor, forma) que se encontra a chave destas combinações. O número está implícito no ritmo, impõe-se como pensamento matemático patente na organização do espaço e do tempo em partes (proporções). É essa a experiência in situ desta exposição: uma dança sobre a parede branca (em vez do chão) porque se destina ao olhar. Nesta dança a artista convoca o branco da parede como uma risca mais a participar no aparato. Da proporção e do ritmo nasce a forma e a fórmula: rectângulos verticais criam um aparato de tiras coloridas: Banded Apparatus. O título da exposição não é apenas descritivo é também enunciado poético que celebra a festa da Inauguração. Inaugurar significa fazer como da primeira vez, repetir a primeira vez, ao mesmo tempo que celebra o factum est do trabalho artístico. Assim, a festa é inseparável do ócio como celebração do que foi feito. A ociosidade festiva contém uma dimensão essencial da praxis em que o simples fazer quotidiano não é negado nem abolido, mas apenas suspenso e tornado ocioso. A conclusão deste trabalho criativo consiste na festa da sua exibição, pelo ócio do criador. A inauguração é a festa da ociosidade onde se exibe o que foi criado pois, então, o criador oferece aos outros o seu trabalho.Para além do enunciado genérico, existem enunciados pintados onde as pinturas se descrevem, apontam-se umas às outras ou para si mesmas: duplicam-se pela linguagem (aparentemente).


PaperWork é uma série de pinturas sobre papel onde a inscrição pintada faz referência ao limite que separa o enquadramento da tinta e a superfície suporte. A inscrição parece repetir uma fórmula e, contudo, ora indica, ora mostra, ora coloca um problema ao nível da percepção. A aplicação de uma mesma cor na inscrição facilita a leitura e cada termo torna-se transparente, desaparece para dar lugar ao seu sentido. Mas, exactamente porque «Ceci n’est pas une pipe» ou, nos termos da artista, o enunciado «gray» é inscrito numa outra cor que não o cinzento, cria-se um conflito perceptivo entre o que se vê e o que se lê. Este conflito é manifesto sobretudo ao nível da memória, quando a posteriori, e na tentativa de recordar uma destas obras, cada visitante saberá se é leitor ou observador, justamente porque como leitor se lembrará da cor inscrita, e como observador recordará o pigmento da inscrição.  
M. P. Prieto / Ema M.Lisboa, 10 de Março de 2012
Mónica Capucho is an artist who shows an admirable cohesion in her pictorial proposal. In her work the poïesis – meaning the creative talent is translated as painting. A painting enhanced by the other meanings brought along. This acts as a load, a strength witch goes, by far, beyond the linguistic expression. It goes beyond, through the gesture applied in the painting of each letter, in the thickness of paint that stands out against the surface, in the pigment chosen and in the intimate relation of the gathered linguistic and pictorial expressions (following the semiology terms).


Banded Apparatus is, above all, a transtextual proposition since it relates text (language), paint (painting) and rhythm (music). Text, trough the vertical inscription, in each painting, bringing out each letter or a phrase (number, colour, form); paint, as the means chosen by the artist for that inscription; rhythm, through the sequential proposal for the installation.
In the source of the phrase (number, colour, form) can the key to these combinations be found. The number is implied in the rhythm, it imposes itself as mathematical thinking, partly visible in the organization of space and time.
This is the experience in situ of the exhibition: a dance on a white wall (instead of on the floor), since it is meant for the eyes. In this dance the artist summons the white colour on the wall as another band to become part of the apparatus. From the proportion and the rhythm comes out the form and the formula: vertical rectangles create an apparatus of coloured bands: Banded Apparatus. The title for the exhibition is not only a description but also a poetical expression celebrating the festivity of the Opening. To inaugurate means to do as for the first time, as if it were, repeat for the first time and simultaneously celebrate the factum est of the artistic work. In this way festivity cannot be disconnected from leisure as a celebration of the work done. The festive leisure encloses an essential dimension of the praxis in which the plain daily work is neither denied nor abolished, but only suspended and turned idle. The conclusion of the creative work consists on the celebration of this exhibition by the creative leisure. The inauguration is the celebration of leisure where what was created is presented when the creator offers the others his work.
Beyond the generic enunciation there are painted presentations in which the paintings are self- descriptive, pointing to each other or to themselves: they (apparently) double themselves through the use of language.
Paperwork is a serious of paintings on paper where the painted inscription makes a reference to the limit separating the framing of the paint from the supporting surface. The inscription seams to repeat the formula but, however, it either indicates, or shows, or poses a problem at the level of perception. By applying the same colour on the inscription it makes the reading easier and each term becomes transparent, it disappears to give way to its meaning. But exactly because “ceci n’est pas une pipe” or, in the artist’s words, the enunciation “gray” is inscribed on a colour which is not gray, a perceptive conflict arises between what is seen and what is read. This conflict is apparent above all at the level of memory when, a posteriori, and in trying to remember one of these works, each visitor will know if he is a reader or an observer. In the first case he will remember the colour inscribed and in the second one he will remember the colour of the inscription.

Possessive Statement
Consta numa das etapas das Expositions des Arts Incohérents, em 1983, Alphonse Allais terá exibido uma das primeiras manifestações do espaço vazio na história da arte. Apresentou então uma moldura sem tela, a que deu o título Tableau d’à Venir. Desde então, têm sido muitas as formas de o vazio se manifestar, desde a galeria vazia com a montra vazia de Yves Klein, à declaração de Ben N’Expose Pas, de Ben Vautier. A ausência ainda preenche muitas propostas de arte contemporânea, aliás.A exposição que Mónica Capucho apresenta agora segue essa linha, mas incute-lhe uma variação fundamental: a da posse. Começa com uma sequencia de 36 peças em mdf pintadas com várias cores. Estão quase todas dispostas em grandes quadrículas, realçando o vazio que deixam nas paredes brancas. Cada uma  delas tem inscrito uma negação: “It Doesn’t Have To Be Like This”, numa das peças, ou “It Doesn’t Have To Be Serious”, numa outra cinzenta, são alguns exemplos. Têm jogos de significados que tanto nos confrontam com cada uma das peças como com toda a exposição.Porém, após várias conjugações, estas peças passam a uma fase em que o vazio predominante se chega ao preenchimento e ao padrão, nas várias acepções do terno. Aí encontram-se cinco telas, de183x183 cm também acompanhadas (confrontadas?) por uma peça de mdf pintado e outras negações inscritas (como “It Doesn’t Have to Be Square”, por exemplo). São telas ocupadas por padrões, obtidos através de um método a que Mónica Capucho gosta de chamar “instinto racional”. A forma como estes padrões preenchem o vazio é notória, remetendo também para as convenções do que poderá ser uma “obra de arte”, enquanto objecto de posse e transacção.A última obra desvenda toda a exposição. É novamente uma peça em mdf, desta vez isolada, colocada na horizontal e num ponto alto da parede. É a única que contem uma afirmação: “It Just Have To Be Mine”, que é uma declaração de posse totalizadora.Ben Vautier complementou o seu Ben N’ Expose Pás com um Ben Expose Partou, assim como a única forma de Arman conseguiu encontrar para responder ao Le Vide de Yves Klein foi o de atafulhar a mesma galeria com tralha. Chamou-lhe  Le Plein.
Sérgio Gomes da Costa01/07/2010


Uma questão de pormenor

Durante séculos, a função da pintura foi de contar histórias. Santos, santas, animais, personagens mitológicas, retratos de reis e rainhas, auto-retratos de artistas, até, falavam, para alem ou através da riqueza de cor e luz, dos modos de representar, apropriar e dar a ver o espaço, de uma narrativa implícita: a da mestria de quem fazia, a do poder de quem encomendava e, à medida que a contemporaneidade ia chegando, a história sempre complexa, íntima, pessoal e cada vez mais óbvia do próprio artista.Perante a pintura de Mónica Capucho, que não conta histórias mas que se serve de matéria – prima dessas narrativas para existir, é legitimo recordar essa função antiquíssima da arte. Tudo se passava, no modo antigo de conceber o mundo, como se a multiplicidade de imagens se acrescentasse pouco a pouco à fragmentação do mito. Cada história contada (ilustrada) materializava-se porque havia um pensamento anterior, primordial, que se duplicava e reflectia especularmente nela. Por exemplo: se As Meninas de Velásquez são, alem de um ponto fulcral da história da pintura, a representação figurada da omnipresença do olhar do rei (do poder do rei) no mundo, essa representação foi possível porque a teoria política barroca assim o tinha previamente determinado. Um artista não é um mero propagandista, mas tudo o faz, porque tudo se insere num circulo económico definido num dado tempo histórico, é passível de leitura politica.Regressando às Meninas, o quadro de Velásquez não seria o mesmo sem a leitura do pormenor da imagem dos reis vistos no espelho. É esse pormenor, que ainda hoje só é perceptível por quem mantenha o dom raro de saber ver ou quem conheça a célebre interpretação de Foucault, que dá todo o sentido à pintura. Pintura essa que, aliás, se destinava a reflectir em todo o momento o poder de quem a via: destinada ao palácio real, não seria, como hoje é, objecto de visita apressada pelas multidões que percorrem o Museu do Prado. Digamos que, aqui, o pormenor é elevado à categoria de chave para abrir o sentido da pintura (ao mesmo tempo que um outro pormenor, aliás. O da personagem em pé na abertura da porta, permanece uma incógnita). Nem sempre foi assim; mas pode dizer-se que, para um artista, o pormenor nunca é insignificante. Recordo, por exemplo, os insectos que esvoaçam no meio das naturezas mortas holandesas do século XVII. E que acrescentam sentido à leitura simbólica da riqueza terrena em decomposição que essas pinturas muitas vezes possuíam; ou o gato aterrorizado numa Anunciação de lourenzo Lotto  que parece saltar para fora do próprio suporte da pintura, sinal simultâneo da perícia do pintor e da humanidade de Maria que se sobressalta com a visita do anjo.Assim o pormenor é feito para ser visto, ou melhor, descoberto. Trata-se de uma espécie de prémio que é concedido à capacidade de ver, partindo do pressuposto, com se fazia antes da modernidade, que essa capacidade dependia da vontade do espectador. Hoje, é antes o corpo desse mesmo espectador que está em casa nos limites que os órgãos dos sentidos lhe impõem, e também nas próteses de todo o género que se inventam para os superar.Considere-se assim a pintura de Mónica Capucho. Trata-se de telas em que a materialidade do objecto é acentuada pela utilização restrita e texturada da cor. Em primeiro lugar, um jogo erudito e tecnicamente irrepreensível de velaturas sucessivas permite criar superfícies espessas, como se tratasse de esculturas, ressalvando sempre o facto de que a cor e a técnica usadas classifica indubitavelmente estes objectos dentro da disciplina da pintura. Contudo, essa primeira hesitação que o espectador sentirá perante o que vê – trata-se de escultura pendurada na parede, ou de pintura que, em vez de representar o espaço tridimensional, o capta na sua própria essência? – anula-se perante o facto de todas as obras apresentarem palavras escritas. A hesitação entre pintura e escultura deixa de fazer sentido perante esse outro sentido, mais lato, que as palavras indicam ao espírito do espectador.Assim, perante a ausência de representação na pintura de Mónica Capucho -  perante a ausência de histórias para contar com base numa qualquer representação figurativa -, ficamo-nos com objectos onde se inscrevem palavras. Acontece que essas palavras nem sempre se dão a ver. A observação depende das condições de luz e sombra, da posição do espectador, da hora do dia. A artista pode escolher pintar as palavras numa tonalidade mais clara ou mais escura que a cor do fundo; ou pelo contrário, representá-las exactamente com o mesmo tom azul ou carmim, de modo a convocar a atenção do espectador para as decifrar. Ou seja, as palavras, na pintura de Mónica Capucho, funcionam sempre como o pormenor de outros tempos que encerrava, desvendando-o, o sentido da obra de arte.Podemos, como é evidente, imaginar uma obra em que as palavras não tivessem sido feitas para ser lidas. Podemos imaginar uma pintura em que a artista guardasse a chave de leitura, e a partir daí a chave também do significado da obra. Conceptualmente, estas pinturas quase monocromáticas , com sugestões de divisões verticais de campos distintos, lembram a pintura de Frank Stella, e levam-nos a recordar uma das frases do minimalista Carl André a propósito dela, depois de ter afirmado que o mesmo Stella sentira a necessidade de pintar riscas:”There’s nothing else to see”. É que, de facto, o que se dá a ver é a pura materialidade do objecto tridimensional a que chamamos pintura – conjugada com o relevo, tão subtil como um pequeno pormenor, das telas que formam diversas palavras escritas.O modo como estas palavras surgem contribui para acrescentar sentido a esta leitura da obra da artista. Numa série anterior, Mónica Capucho escolheu inscrever o nome comercial da tinta usada sobre uma superfície pintada dessa mesma cor. A obra remetia-mos assim para dois códigos diferentes: um, essencialmente visual, e o outro, do domínio da linguística (pois o nomear é o acto metafórico que está na própria raiz do nascimento da linguagem). A serialidade associada a este tipo de obras metaforiza o conceito de colecção, como reunião, catalogação, exposição e conservação de um conjunto coerente de objectos. Se este tipo de trabalho encontra paralelismos bastantes na arte contemporânea – de Lothar Baumgarten a Pedro cabrita Reis -, o sentido que a obra de Mónica Capucho tomava então necessitava de um ponto de viragem para não se tornar redundante.Esse ponto foi alcançado agora – e pode dizer-se que, na série actual, as palavras adquirem um peso proporcional ao do trabalho matérico.Numa série, que apresenta as medidas de 180x50x4 cm elas associam-se automaticamente, sem nexo lógico aparente, embora a artista nos diga que se trata sempre de composições. Noutra, de obras de 60x60x4 cm, apresentam-se frases curtas, como pensamentos espontâneos. Na terceira, finalmente, são afirmações mais complexas. Esta última série é formada por obras com as medidas de 140x200x4 cm, ou de 200x140x4 cm.O moda de construção de frases e das palavras faz um apelo forte ao acaso. Por exemplo, Mónica Capucho pode partir de um texto pré – existente e escolher dentro dele uma ou mais palavras que lhe captem a atenção. Estas são depois compostas, como um jogo de cadáver - esquisito, por associação, completamente ou exclusão mútuas.Por isso, é possível descobrir, numa dessas pinturas, uma frase que nos diz que “this painting is/directly/build with sensibility”... a sensibilidade, ou seja, mesmo aquela que parece mais mecanicamente construída. Neste processo de trabalho que, de tão preciso, lembra o de uma máquina, o corpo, o acaso, a subjectividade e a emoção irrompem sem pedir licença, porque afinal nestes começos do século XXI, já ninguém se ilude com a crença de que é possível dominar esse corpo. No pormenor do que se sente, apenas perceptivél a quem é capaz de o ver, reside todo o sentido da pintura de Mónica Capucho. Mesmo que, como aqui acontece, haja sempre algo, no fim, que permanece por dizer.Luísa soares de OliveiraSetembro 2003


Seriedade e jogo
Entre o sentir e o pensar se situa, sempre, a pintura, um sentir que cobre várias gamas emocionais e outras tantas sensoriais, e o pensar organizando a mente, o espaço, a informação que se dispensa. Olhando para a exposição de pintura de Mónica Capucho apercebemo-nos primeiro de um sistema, aparentemente rígido e programático.Os formatos são três: Dominando o espaço, longas telas de 95x150 cm, divididas cada uma em 10 rectângulos iguais (mais ou menos 42,5x30) cada um da sua cor, nomeada também por letras em relevo. Mais retirada, uma série de pinturas mais pequenas (56x32 cm), dividida cada uma em dois (quase) quadrados com as suas cores respectivos, tendo também letras relevadas que desta vez designam tão somente a sua própria cor e não a do campo onde se instalam. Nas costas de quem entra, duas pinturas colunas, com a altura quase humana (1609) articuladas em sete rectângulos negros todos diferentemente trabalhados e texturados.Aparentemente estamos perante um jogo de escalas de palavras, nomeações, referencias em circulo fechado, onde se pode verificar (e sentir) a diferença entre o que a pintura diz e o que a pintura é. Há um discurso das palavras, certo, aproximativo, ilustrativo, deslocado, auto-referente.Há um discurso da pintura, da sua materialidade e textura, da iluminação que por vezes enruga e modifica as superfícies, quando não, na relação coma luz incandescente, vem o pigmento utilizado modificar a nossa percepção da cor, quero dizer, a cor que reconhecemos não é a que lá está.Mas, afinal, o que lá está?Se bem olharmos verificamos que, caso a caso, melhor dizendo, fragmento a fragmento, rectângulo a rectângulo, esta é uma pintura - placa e esta placa é, afinal, um obstáculo que deixa antever, como a luz, como fresta, como deliberado engano, uma realidade subjacente. Este universo só aparentemente é que está bem ordenado, só aparentemente é que se erige em sistema.Sob a ordem espreita algo outro. O caos? Não o podemos saber. Verificamos, sim, que algo mexe e trabalha sob a cor e as palavras que a nomeiam ou não.Ao sair da exposição o mundo organizado que tínhamos encontrado de início ainda lá está paginando o espaço da galeria, e, pintura a pintura, a sua própria superfície. No entanto sabemos, porque a pintora deliberadamente no-lo fez notar, que tal mundo não é mais que uma aparência e que a pintura ao mostrar esconde sempre. Às certezas seguem-se as dúvidas, à seriedade o jogo.José Luís Porfírio04/04/2000



Diagrama da luz

Catalogando a matéria com rigor, nomeando-a destacadamente, Mónica Capucho não perde nunca o sentido lúdico, o prazer do fazer e da surpresa.Na acumulação matérica da tinta de óleo sobre outras cores diversas previamente estabelecidas, a sedimentação proporciona a criação de uma tensão sensível à superfície, potenciando a diagénese. Escondendo, realçando, subvertendo, Mónica confirma na pintura, mas também noutra escrita, a homenagem que presta à natureza inicial do óleo. Às variáveis resultantes que traçam exemplarmente a infinitude na finitude de um diagrama de luz.Aceitando a espantosa realidade das coisas, quer dizer, da matéria, Mónica constrói, com o essencial, uma obra substantiva, despojada de efeitos, onde a limpidez da luz faz ressaltar a entropia dos grãos. A textura rectilínea  tão bem conjugada com a geometria das bandas e das etiquetas.
Este rigor sensível traz-nos à ideia o exemplar percurso de Gerardo Rueda, também na sua procura obstinada da cor.Que não há.Lisboa, 21 de Fevereiro de 2000Carlos Neves de Carvalho


A pintura apartada do visível

Há nestas pinturas de Mónica Capucho várias configurações de leitura: em primeiro lugar, num plano que é de todo imediato e próprio do “ser”das “artes visuais”, impõe-se considerar aqui uma leitura visual. Para começar, tal passa pela indexação das soluções visuais: composicionais ou cromáticas. Se avançarmos para outros planos de leitura (que o próprio trabalho impõe e desviantemente obriga), poderemos verificar que cada novo contexto de interpretação vai discretamente desmentindo a preeminência  dessa referida recepção ou leitura visual.Portanto, pelo menos duas outras possibilidades de leitura se proporão para este território, embora advindas das proposições visuais lidas em si mesmas (telas, bases de gesso, cores, texturas, palavras em relevo). Trata-se de considerar as relações entre os “textos” (os “nomes” das cores que identificam cada espaço rectangular correspondido por um valor cromático) e as imagens como, em primeiro lugar, “jogos de linguagens” (considerando também a natureza volátil da existência  da cor, o que impele ao jogo das nomeações de certo modo herdeiro do já histórico processo “nominalista pictural”); seguidamente, uma outra componente reforça esta reivindicação de arbitrariedade na relação cor/nome – refiro-me à dupla fisicalidade destes quadros, quer fazendo corresponder a cada campo de cor um preciso padrão textural (é claro que é arbitrariedade que aqui reina, na medida em que a pincelada vertical ou horizontal não interpreta nenhuma cor, o que nos monocromos negros é bem patente, pois aí vemos, compartimentada e indiferenciadamente, rigorosas gestualidades, ora na vertical ora na horizontal); quer, sobretudo, fazendo inscrever (através de “formas” próprias) os nomes das cores em “baixo-relevo” nos campos respectivos.Estes campos de cor manifestam-se numa composição minimalizada, pois a grelha de distribuição dos rectângulos não podia ser mais simples: uma linha horizontal divide o campo da tela em duas partes iguais  e cada um destes dois rectângulos dá origem a vários outros justapostos e idênticos. Como vimos, a cada um corresponde uma cor - valor , uma textura e um “nome” inscrito em relevo, o qual diz aquilo que se vê “warm grei”, “raw umber”, “cold grey” etc.As várias hipóteses de leitura assim propiciadas explicitam-se deste modo : elementaridade da composição (ou mesmo apagamento composicional); fisicalidade da escrita e das texturações de cada campo de cor, arbitrariedade, quando não mesmo troca intencional e inversão, de nomes e cores (sobre violeta pode escrever-se, por exemplo, “ivory black”). Tudo contribuindo como veremos, para desvalorizar uma leitura uma leitura situada exclusivamente na recepção visual. Essa desvalorização do visível vai-se ampliando na persistência da observação até se equivaler a um nível de leitura mais conceptual, como o que privilegia o “jogo de linguagem” e a critica da própria linguagem  como corpo neutro de “informação” (recorde-se, era nesta crença que se fundava todo o conceptualismo linguístico – desde Kosuth e da tese da arte como “preposição analítica”).Insistindo numa leitura exclusivamente visual, diremos estar em presença de enunciados tautológicos. Isto, repita-se, se optarmos pela exclusividade imediata da presença reduzida ao que se vê (vício civilizacional, o da verificabilidade).Como a classificação da cor - valor tende, por escrito, a dizer o mesmo da sua materialização na tela (sempre em superfícies planas, embora texturadas - pelo gosto), estamos perante multiplicados tautológicos, na medida em que esta sinaliza a repetição de uma ideia por meios diferentes.Distintivamente de uma “proposição”, para Wittgenstein, a tautologia (“titanium white” sobre um rectângulo branco) não diz nada, não mostra a sua forma de significar, não possui “condições” porque é incondicionalmente verdadeira.(Em lógica, tautologias são formulas válidas que especificamente no plano da lógica sentencial, depois de submetidas a várias operações dão sempre “V” – verdadeiro).Mas a presença da tautologia nestas telas é aparente, pois embora elas se apresentem sempre em dupla grafia (imagem e palavra, mostrar e nomear, figurar e dizer) a autora recorre a dois processos para a contradizer. Em primeiro lugar, em algumas telas a palavra aponta um valor cromático distinto do seu suporte de inscrição ; mas há outra estratégia mais subtil – pendente da questão do relevo das inscrições.Os valores cromáticos percepcionados só correspondem ás inscrições em concretas condições lumínicas. Isto é, as cores nada mais são do que o resultado da observação das radiações luminosas pelos materiais – o que resta e não foi absorvido é - nos, como se sabe, “devolvido” em forma de “sensação de cor”. O que varia a este nível não varia no plano da linguagem – “titanium white” está em permanência escrito e relevado na superfície da tela; podemos de qualquer maneira ler a palavra tacteano. Resumindo, há um momento e um determinado conjunto de condições em que a cor e palavra correspondem. Fora disso, sabemos existir uma descoincidência entre o mostrado e o dito.Contudo há ainda, para usar uma expressão de Michel Foucault (Ceci n’est pas une pipe, 1973), uma conciliação parcial, só que dependentemente de factores externos á própria tela. Kosuth, em Art After Philosophy (1969), escreveu: “A.J. Ayer, ao avaliar  a distinção kantiana entre o analítico e o sintético, diz algo que nos pode ser útil: “Uma proposição é analítica quando a sua validade depende exclusivamente das definições de símbolos que contém, e sintética quando a sua validade está determinada pelos factos da experiência”. A analogia que quero estabelecer refere-se à condição artística e à da proposição analítica.De certo modo, seguindo este raciocínio ainda que com algum esquematismo, verificamos de imediato que estas pinturas não se situam nem no plano da tautologia 8que aparentavam desde inicio da  observação), nem na proposição analítica, como pretendida pelo conceptualismo linguístico. Estas telas dependem de múltiplos factores da experiencia, apontam para o exterior, renunciam à neutralidade da linguagem para lhe conferir um “corpo físico”, apontando entretanto para uma troca de inscrições e cores. Em primeira e última instância, estas nomeações transportam conceitos e cor. E. Wittgenstein interroga-se : não existirão pessoas cujos conceitos de cor se distanciam dos nossos’ assim se pode soltar, pelo menos parcialmente, a ligação entre a inscrição e a cor que a  acompanha, ou seja, o peso intrínseco da linguagem, da mesma linguagem sobre a qual Roland Barthes dizia ser um  instrumento autoritário, não porque interdita, mas antes porque obriga a dizer.O jogo aqui pode ser outro – passa por admitir a hipótese de dizer algo ao mesmo tempo próximo e muito afastado daquilo que se mostra e sabe que existe.Carlos Vidal24/02/2000



 

Using Format