REGENERATING
Fábrica Catalã, Azaruja.
Regenerating
Dizer
que a obra de Mónica Capucho é composta de fragmentos, seria dizer que a obra
foi inteira e não é mais. Não devemos confundir dimensão com integridade. Na
verdade, a artista descola conceitos da realidade e cola-os em algo novo,
criando significados e proporção. A artista é o agente que atribui habilidades
regenerativas aos fragmentos, capacitando-os para a criação de um corpo.
Em
Regenerating, Mónica Capucho cria um corpo, composto por fragmentos de memória
e presente, a partir da história do espaço da Fábrica Catalã. O espaço físico é
explorado como o lugar conciliador de comunidade e natureza, que no Montado são
esferas que se beneficiam mutuamente.
Há
três planos em Regenerating – criação artística, memória e comunidade – que
existem unidos intimamente no espaço-tempo da exposição. A artista cria no seio
da continuidade da natureza, anulando a distância entre passado e futuro, e
fazendo um corpo presente, aberto em crescente ampliação, onde múltiplas
durações coexistem.
Raquel
Gaspar Silva
Regenerating
To say that
Mónica Capucho’s work is composed of fragments would be to say that the work
was whole and is no more. We must not confuse dimension with integrity. In fact,
the artist unglues concepts from reality and glues them onto something new, creating
meanings and proportion. The artist is the agent that confers regenerative
skills upon the fragments, qualifying them for the creation of a body.
In Regenerating,
Mónica Capucho creates a body, composed of fragments of memory and present, from
the history of the space of Fábrica Catalã. The physical area is explored as
the harmonizing place of community and nature, which in Montado become
mutually-benefitting spheres.
There are three
planes in Regenerating – artistic creation, memory and community – which exist closely
linked in the space-time of the exhibition. The artist creates within the continuity
of nature, cancelling out the distance between past and future, and making a
present body, open in increasing expansion, where multiple durations coexist.
Raquel Gaspar
Silva
Uneven Order | Exposição Individual 2020
CARLOS CARVALHO ARTE
CONTEMPORÂNEA
Durante o Verão de 1947, Yves Klein olhou para o céu e, contemplando a infinitude, usou-o como exemplo para
pensar sobre as amplas possibilidades criativas da cor azul, declarando: “O
azul do céu é a minha primeira obra de arte”[1]. Mais tarde esclareceria: “o azul não tem
dimensões; está para além destas, enquanto que nas outras cores não é assim.
Todas as cores despertam ideias associativas específicas enquanto que o azul
sugere no máximo o mar e o céu, e estes, afinal, são, dentro da natureza real e visível, o que é de mais abstrato”[2]. Em 1947, Klein começou a produzir peças pintadas de uma só cor, chegando às quase duzentas
peças, tendo registado a autoria do pigmento que se popularizou mais tarde como
o IKB International Klein Blue. Acreditando que a cor era energia pura, adoptou
o monocromatismo porque entendia-o como um caminho para a total rejeição da
representação na obra e, por isso, um modo de atingir um nível máximo de
liberdade criativa. Portanto, aplicou o azul em esponjas coladas em tela, em
performances no corpo de modelos ou em esculturas, destacando-se as conhecidas
representações do globo terrestre ou da Vitória de Samotrácia.
Esta terceira
exposição individual de Mónica Capucho na galeria Carlos Carvalho é composta
por três núcleos distintos, agrupados por organizações formais similares entre
si: de um lado as pinturas de vários formatos de outro as peças de parede e as
peças de chão. Mais uma vez, a palavra cria um efeito de equilíbrio desafiando o
papel que a mancha e a textura de cor adquirem na obra. A artista inscreve
indicações, ora tautológicas, como por exemplo em “Interconnection of blue
sequences”, ora confrontando o observador com uma suposta objectividade
mostrando as frases: “Peculiar, Unfaked and Honest Blue” ou “Pure, Elegant and Sincere Blue” e quase dando ao azul uma dimensão afectiva,
descrevendo o objecto criado e jogando com os significados e desenhos das
palavras.
Aparentemente
objetivos e não referenciais, os trabalhos exibem um amplo mostruário de
texturas, brilhos, pinceladas e matizes subtis que encerram em si próprios uma
linguagem visível apenas quando detectada numa análise mais profunda. Mónica
Capucho motiva-nos a observar mais além da aparência colocando jogos de
ocultação do material, usando por exemplo superfícies com resultado visual
semelhante, misturando inclusive pigmentos para o efeito, mas que se
diferenciam na essência e na percepção ao toque. O espaço de decisão da artista
está nas composições de materiais, nas texturas, e na sua articulação com o
significado ou com o desenho da palavra. A materialidade é interpretada e
compreendida em todas as suas dimensões: a artista mistura betão, madeira,
pedra ou silicone, controlando os seus efeitos e a forma como se apresentam ao
observador pensando na temperatura, no brilho ou na textura, na atração ou
frieza, na dureza ou na maciez da matéria.
Para
Yves Klein, a adopção da cor única traz à obra um sentido de dissolução das
diferenças dos materiais com vista à abstração total. No trabalho de Mónica
Capucho, pelo contrário, a opção pela prevalência da cor única segue um caminho
inverso convidando o observador a focar-se quase exclusivamente sobre as
qualidades materiais do objecto. O cinzento e branco são cores auxiliares que
agem para dar expressão ao azul porque tudo funciona em direcção à cor única. A
escolha pelo quase monocromatismo permite ao observador ver o desenho formado
pela composição dos materiais, texturas, consciencializando-o para o modo como
estes afectam a nossa percepção da cor. As obras apresentam uma multiplicidade
de variáveis em torno do azul seja este mate ou luminoso, com diferentes tons e
intensidades analisando a sua força de amplificação para o espaço da galeria. A
artista faz-nos, por isso, mergulhar no azul múltiplo, infinito e complexo e
que se transforma com os diferentes materiais.
Mónica
Capucho pensa também na obra enquanto objecto que funciona como parte
estruturante de um todo, não descurando o seu valor singular. A
pintura-instalação torna-se fisicamente activa: a artista explora propriedades
da obra no espaço analisando peso, estabilidade e densidade. Os trabalhos, de
configuração puramente
geométrica, expandem-se na
visualidade da galeria, ora isolando-se em
algumas instalações, ora fazendo parte de um todo global. Sendo uma exposição site specific, é no espaço que
as obras se apresentam, pelas relações criadas entre cada uma e numa instalação que se coloca em diálogo com
as linhas arquitectónicas das duas salas. A exigência no observador da
propriedade física do objecto, designadamente a escala e a presença, fá-lo assumir um papel crucial, a
par da importância da obra e do espaço. A opção pelo quase monocromatismo
também confere à exposição essa densidade imersiva. O uso da cor predominante
desmaterializa a obra, criando maior permeabilidade na sua relação com espaço
de exposição. O foco, por isso, está na totalidade - a cor autonomiza-se, sai
da pintura e liberta-se no vazio.
Da
mesma forma que Yves Klein inventou o pigmento IKB, tornando-se um químico em
laboratório, a artista dirige o seu trabalho para a análise quase laboratorial
da percepção da cor, dos materiais e das formas em articulação com o observador
e com o espaço, convertendo esta exposição numa obra total com dimensão
corpórea e sensitiva.
CARLOS CARVALHO ARTE CONTEMPORÂNEA
Rua Joly Braga Santos, Lote F R/C
1600 - 123 Lisboa Portugal | Tel.+(351) 217 261 831
UNEVEN
ORDER | SOLO EXHIBITION (2020)
CARLOS CARVALHO ARTE CONTEMPORÂNEA
During the summer of 1947
Yves Klein looked at the sky and gazing at the infinitude used it as an example
of thinking about the limitless creative possibilities of the colour blue,
declaring: “the blue of the sky is my first work of art “. Later he would explain “Blue
has no dimensions; it goes beyond them, while the same doesn’t happen with the
other colours. All colours stir up specific associative ideas, whereas blue
suggests mostly the sea and the sky and these are, after all, in nature that is
real and visible, completely abstract”. In 1947 Klein started
presenting works painted in one colour only, reaching almost two hundred
pieces, having registered the authorship of the pigment, which later become
popular as IKB, the International Klein Blue.
Believing that colour was
pure energy, he adopted monochromatism, for he understood it as a way of
totally rejecting representation in his work: he saw it as a means to get to
creative freedom. Therefore he applied blue in sponges glued on canvas, in
performances on the body of models or on sculptures, from which stand out the
well known representations of the globe or of the “Victory of Samothrace”.
This third solo exhibition
of Mónica Capucho in the gallery Carlos Carvalho is composed of three
distinctive nuclei, grouped according to formal similar organizations; on one
hand the paintings of different sizes; on the other the wall and the floor
pieces. Once more the work creates a balance, challenging the role that both
the colouring and the texture acquire in the work. The artist writes
indications either tautological, as, for instance, in “Interconnection of blue
sequences” or confronting the viewer with the supposed objectivity in sentences
such as “Peculiar, unfaked and honest blue” or “Pure, elegant and sincere
blue”. She is giving blue an almost affectionate dimension, describing the work
and playing with the meanings and drawings of the words.
Apparently objective and
non- referential, the works display a large show-case of textures, sparkles,
brushstrokes and subtle hues, containing in themselves a language only
understood in a deeper analysis.
Mónica Capucho motivates us
to observe beyond the outlook, playing hyding games, using for instance,
surfaces with a similar visual result, mixing pigments for the effect, but
which are different both in essence and perception to touch.
The artist’ s decision
capacity dwells in the composition of materials, in the textures, in their
articulation with the meaning or the drawing of the word.
Materiality is interpreted and understood in all its dimensions: the
artist mixes concrete, wood, stone or silicone controlling their effects and
the way in which they present themselves to the viewer, thinking about the
temperature, the sparkle or the texture, about the attraction or coldness, the
harshness or softness of the matter.
For Yves Klein the adoption of one only colour brings to the work a
feeling of dissolution of the differences in various materials, leading to
complete abstraction.
In Mónica Capucho’s work, on the other hand, the option of the
predominance of just one colour follows a different path, inviting the viewer to
focus almost exclusively on the material qualities of the work. Gray and white work
as auxiliary colours acting to give expression to blue, so that everything
works towards one colour. The choice for the near monochromatism allows the viewer
to see the drawing formed by the composition of the materials and the textures,
making him conscious of the way in which these influence his perception of the
colour.
The works show a multiplicity of variables around blue, dull or shiny,
with different shapes and intensities, analysing the strength of amplification
in the space of the gallery. The artist makes us, therefore, plunge in the
multiple, infinite and complex blue, altering according to different materials.
Mónica Capucho also thinks
about the work as an object that functions as a structural part of a whole, not
dismissing its singular value. The painting-installation becomes physically
active: the artist explores properties of the work in space, analysing weigth,
stability and density. The works in pure geometrical shapes, expand themselves
through the gallery, either isolated, as is the case of some installations, or
being part of a whole.
Being a “site specific” exhibition, it is in the space where the woks
are displayed and through the relations created among them and each
installation, that a dialogue is established with the architectural lines of
the two rooms.
The demand on the observer of the physical property of the object,
namely the scale and the presence, makes him play a crucial part, along with
the importance of the work and the space. The option for the almost
monochromatism also gives the display that immersive density. The use of a
predominant colour dematerializes the work, creating more permeability in its
relation with the display space.
Focus is, therefore, on the whole – colour becomes autonomous, gets out
from the painting, frees itself in the emptiness.
In the same way as Yves Klein invented the pigment IKB, becoming a
chemist in a laboratory, the artist directs her work towards the analysis
almost laboratorial of the perception of colour, of the materials and the forms
in articulation with the viewer and the space, covering this display in a whole
work with a corporeal and sensitive dimension.
Patrícia barreira
CARLOS
CARVALHO ARTE CONTEMPORÂNEA
Rua
Joly Braga Santos, Lote F R/C
1600
- 123 Lisboa Portugal | Tel.+(351) 217 261 831
www.carloscarvalho-ac.com
Solid Matter (2018-2019) - Galeria Municipal Vieira da Silva e Sala Multiusos, Loures. Portugal.
Solid Matter
Solid Matter é uma exposição que Mónica Capucho apresenta na Sala
Multiusos e na Galeria Municipal Vieira da Silva, no Parque Adão Barata, em
Loures. Mónica Capucho intervém em dois espaços contíguos, de carácter oposto mas
complementar. Dois locais que se separam pela presença de um pátio exterior, mas
que se ligam pela natureza do trabalho exposto.
A primeira sala (Sala
Multiusos) afirma-se como um espaço ainda inacabado, onde a expressão dos
materiais e a sua lógica construtiva é fortemente vincada. Enquanto espaço
aberto, esta sala caracteriza-se pela sua extensão e marca-se pela presença do
tijolo e da estrutura metálica, que surge de forma assumida. A segunda sala (sala
de exposições da Galeria Municipal Vieira da Silva) aproxima-se ao ambiente anónimo
de um vulgar White Cube, mas detém uma
compartimentação menos evidente e algumas janelas sobre a dominante paisagem
suburbana.
A exposição trabalha entre
estes dois tipos de ambientes, contraditórios e marcantes do decurso da
história da arte. Entre o estaleiro e a galeria, entre o espaço único e a
compartimentação, entre a crueza do espaço frontal e a encenação do espaço branco.
I
Mónica Capucho aborda
a palavra escrita e gere uma ideia que se forma em torno de uma lógica construtiva
e, simultaneamente, constitutiva. Nas suas obras existem dois pontos que se
distinguem, complementam e ganham expressão – a presença da palavra e a marcação
de uma norma.
Na primeira sala, todo
o espaço é ocupado por uma instalação composta por duas fileiras de objectos
que se encadeiam para formar uma perspectiva. A perspectiva marca um ponto que
existe para lá das paredes e define um caminho que nos convida a rodear o
trabalho, levando-nos ao fundo da sala.
As palavras surgem
pintadas sobre materiais de construção civil e a norma é ditada pela composição
ordenada que estes elementos definem. Estes elementos dão corpo a uma base que,
ao mesmo tempo, se torna princípio ordenador e elemento discursivo. Como nas páginas
de um caderno pautado, as vigotas de betão ordenam duas linhas, com fiadas
paralelas, onde se pousam placas de betão, madeira, cerâmica e vidro. Sobre estas
placas, que detêm sempre o mesmo tamanho e são a planimetria de um tijolo,
existem palavras que reflectem ou contradizem a natureza do sistema criado.
As obras trabalham
com a força da gravidade, constroem-se por sobreposição, e dispõem-se no
pavimento. Nessa articulação, as palavras ligam-se, os materiais cruzam-se, as
frases emergem, os objectos ganham forma e os sentidos encadeiam-se. A palavra
que surge em cada elemento é lida como afirmação e o vazio que fica entre cada parte,
é lido como silêncio. Funcionando como pequenos Haikus, cada obra é feita do diálogo que se gera entre a matéria, a
palavra, o espaço e o silêncio. Aqui, todas as obras são iguais no princípio ou
na norma que os delineia, e diferentes naquilo que comunicam. Assim, a relação entre
duas ou mais placas e a sua proximidade aos limites da base, acompanham a
natureza do material e o sentido das palavras que sobre elas se inscrevem. Mónica
Capucho cria um sistema de ordenação que cruza a natureza do que está
fisicamente presente, ou do que se manifesta como matéria, com o carácter do
que imaterialmente se invoca, ou do que se manifesta como palavra. A
articulação entre estes elementos produz uma interlocução que funciona
isoladamente para cada obra, mas que também relaciona as diferentes obras, o
todo da instalação e o espaço envolvente.
Dir-se-ia que a
artista ensaia uma lógica gramatical para algo que é intuído, procurando, no
fundo, uma expansão do seu sentido. Cruzando algo físico, tangível e
mensurável, com algo imaterial, invocatório e especulativo. Ou, como a própria
refere, gerindo a obra com “um instinto racional”.
II
A sala de exposições recebe
um conjunto de obras que ocupam as paredes e acompanham a compartimentação do
espaço existente. Na sua maioria tratam-se de pinturas sobre tela que definem
vários grupos de acordo com uma dimensão tipo. No total existem três grupos,
com escalas e formatos diferentes, acrescidos de um outro, autónomo, no final
da sala.
Nesta sala dá-se
sentido a um diálogo entre a palavra e a geometria ou, predominantemente, entre
a pintura e o seu suporte. Esse diálogo, que assenta numa concordância entre a
ordem e a variação, ou entre o encaixe modular e a mudança de composição é,
aqui, contrariamente à sala anterior, de ordem pictórica. Assim, se no outro
espaço essa relação detém um vigor objectual, resultando num conjunto de
esculturas que dão corpo a uma instalação, aqui essa relação tem uma leitura tendencialmente
gráfica, que unifica a intervenção sem a moldar à existência de uma obra única.
Nestas obras, por uma
outra via, a palavra nomeia, a proporção enquadra, e o suporte dá corpo. Este
jogo de relações vive, aqui, de uma subtileza diferente, levando a que o
registo escrito se funda com a base. E, deste modo, quando a cor da palavra é a
cor do suporte, a mesma torna-se sussurrada, promovendo a curiosidade, a
proximidade e a cumplicidade do observador.
A composição da
imagem é explorada de múltiplas maneiras. Utilizando uma métrica, um
encadeamento linear, assumindo a supressão da pintura e a cor da tela crua da
base, ou a mudança de uma paleta pré-determinada que varia entre o preto, o
branco e um conjunto de cinzentos intermédios. Em todos os casos, assistimos à
criação de um alfabeto gráfico que, ora nos dá a ver a raiz da obra, ora no
encanta com a sua expressão.
Nesta sala,
destaca-se ainda um terceiro grupo que faz a ligação entre estas duas
abordagens complementares. Este grupo, que se aproxima do trabalho que a
artista desenvolve na Sala Multiusos, emprega, também, materiais de construção
e relaciona-se com as palavras numa lógica corpórea, que é agora transposta
para um registo bidimensional, de parede. Os materiais surgem apoiados num
elemento horizontal e marcam uma sequência lateral, definindo um sentido de
leitura que reforça e contradiz cada palavra acolhida e/ou cada frase construída.
Estes elementos assumem, também, as proporções e as cores dos módulos empregues
nas pinturas e conectam-se, dessa forma, com as restantes obras.
III
Dir-se-ia que, na
Sala Multiusos descobrimos as obras com base numa análise racional para, depois,
encontrar a sua dimensão poética. Por isso os textos são afirmados, os materiais
são directos, a composição é clara e cada elemento reconhece-se por aquilo que
na verdade é. Na sala de exposições, a ordem é inversa. Neste caso partimos seduzidos
pelo envolvimento da composição para, só depois, lentamente, perceber a sua
lógica de funcionamento. Por isso as palavras desaparecem na cor da base, a
matéria é caracterizada pela tinta e a composição tem uma ordem que não é
imediata.
Em ambos os casos,
Mónica Capucho procede à elaboração de um sistema, de uma norma ou gramática
visual, que é depois alterada (contradita e reforçada) pela inserção da palavra
escrita. Algo que, numa abordagem sensível e inteligente, gere a parcimónia e a
assertividade, encontrando sentido na singularidade que as obras emanam. Entre
a regra e a excepção, entre o conjunto e o individual, entre o raciocínio e a
sensibilidade.
Sérgio Fazenda
Rodrigues
Solid Matter
Solid Matter is an exhibition staged by Mónica Capucho in the Multipurpose
Room [Sala Multiusos] and at the Vieira da Silva Municipal Gallery, in Parque
Adão Barata, Loures. Mónica Capucho intervenes in two adjoining spaces,
opposite but complementary in nature. Two sites separated by the presence
of an outside courtyard albeit connected by the character of the work on
show.
The first room (the Multipurpose Room) is set up as a yet unfinished space,
where the expression of the materials and their constructive approach is
strongly inscribed. As an open space, this room is characterized by its length
and stands out due to the presence of brick and a metallic structure which
emerges very plainly. The second room (the exhibition room at the Vieira da
Silva Municipal Gallery) draws closer to the anonymous atmosphere of a
common White Cube, while still displaying a less evident
compartmentalization and some windows overlooking the suburban
landscape.
The exhibition takes shape between these two kinds of atmospheres, both
contradictory and pivotal in the path of art history. Between the studio and the
gallery, between single space and compartmentalization, between the
rawness of the frontal space and the staging of the white space.
I
Mónica Capucho addresses the written word and generates an idea which is
formed around a constructive and, at the same time, constitutive logic. In her
pieces there are two elements that stand out, complement each other and
become notable – the presence of the word and the establishment of a norm.
In the first room, the whole space is taken up by an installation made up of two
rows of objects that link up to form a perspective. The perspective sets a point
which exists beyond the walls and defines a path that invites us to circumvent
the work, taking us to the end of the room.
The words emerge painted on construction materials and the norm is
prescribed by the ordered composition defined by these elements. They
embody a base which becomes, simultaneously, ordering principle and
discourse element. As on the pages of a ruled notebook, the concrete beams
compose two lines, with parallel rows, where concrete, wood, ceramic and
glass slabs come to rest. On these slabs, which are all the same size and
constitute the planimetry of a brick, there are words that reflect or contradict
the nature of the system created.
The artworks team up with the force of gravity, are constructed by overlap,
and are laid out on the pavement. In this articulation, the words connect, the
materials intersect, the statements emerge, the objects are shaped, and the
senses link up. The word that emerges in each element is read as a statement
and the void which remains between each part is read as silence. Acting as
small Haikus, each work is produced by the exchange it generates between
matter, word, space and silence. Here, all the artworks are alike in the
principle or in the norm which shapes them, and different in what they
communicate. Thus, the relation between two or more slabs and their
proximity to the limits of the base match the nature of the material and the
meaning of the words inscribed on then. Mónica Capucho creates an ordering
system which intersects the nature of what is physically present, or what
manifests itself as matter, with the nature of what is immaterially evoked, or
what manifests itself as word. The articulation between these elements
produces a dialogue which functions in isolation for each artwork, but which
also connects the different pieces, the whole installation and the surrounding
space.
One might say that the artist is testing a grammatical logic for something
which is intuitively perceived, deep down seeking an expansion of its
meaning. By intersecting something physical, tangible and measurable with
something immaterial, recollective and speculative. Or, as the artist herself
puts it, by managing the work with “a rational instinct”.
II
The exhibition room houses a set of artworks which fill the walls and follow the
compartmentalization of the existing space. For the most part, they are
paintings on canvas defining various groups according to a standard size.
Overall, there are three groups, featuring different scales and formats, plus
another one, autonomous, at the end of the room.
In this room, meaning is given to a dialogue between the word and geometry
or, predominantly, between the painting and its stand. This dialogue, which is
based on an agreement between order and variation, or between the modular
fitting and the change in composition, is here, contrarily to what happens in
the previous room, pictorial in nature. Thus, whereas in the previous space
this relation displays an object-based vigour, resulting in a range of sculptures
which constitute an installation, here that relation has a reading that tends to
be graphic, unifying the intervention without shaping it to the existence of a
single artwork.
In these pieces, by another path, the word names, the proportion frames, and
the stand embodies. This game of relations lives here off a different subtlety,
leading the written register to blend with the base. And, in this way, when the
colour of the word is the same colour of the stand, the former becomes
whispered, fostering the observer’s curiosity, proximity and complicity.
The composition of the image is explored in many ways: Using a metrics, a
linear linkage, assuming the suppression of painting and the colour of the raw
canvas of the base, or the shift from a pre-determined palette varying between
black, white and a set of greys in-between. In every instance, we witness the
creation of a graphic alphabet which one moment allows us to see the root of
the work and the next charms us with its expression.
In this room, yet a third group stands out, establishing the connexion between
these two complementary approaches. This group, which is closer to the work
the artist creates in the Multipurpose Room, also uses construction materials
and interacts with the words in a tangible rationale which is now translated
into a two-dimensional register, that of the wall. The materials are laid out on a
horizontal element and establish a lateral sequence, defining a sense of
reading which reinforces and contradicts each word welcomed and/or each
statement built. Also, these elements assume the proportions and colours of
the modules used in the paintings, and in this way connect with the remaining
pieces.
III
We might say that in the Multipurpose Room we discover the artworks on the
basis of a rational analysis only to find their poetic dimension later. For this
reason, the texts are stated, the materials are straightforward, the composition
is clear, and each element is recognized for what it truly is. Now, in the
exhibition room the order is reversed. In this case, we start out enchanted by
the involvement of the composition only to figure out later, slowly, its rationale.
For this reason, the words fade away in the colour of the base, the matter is
characterised by the ink, and the composition has an order which is not
immediate.
In both instances, Mónica Capucho undertakes the construction of a system,
of a norm or visual grammar, which is then altered (contradicted and
reinforced) by the insertion of the written word. Something which, taking a
sensitive and intelligent approach, manages frugality and assertiveness,
finding meaning in the uniqueness emanating from the artworks. Between rule
and exception, between the whole and the individual, between reason and
sensitivity.
Sérgio Fazenda Rodrigues
UNDER PRESSURE 2017
Centro de Artes e Cultura de Ponte de Sor. Ponte de Sor, Portugal.
A possible image for the words
By Martim Dias
Every word has the power of building mental pictures, in the same way as images show the
need for finding verbal justifications, integrating them at determined moments, defining them
or simply offering them an approach to the temporality belonging to the scope of the word.
We live sunk in a world of images and words, elements that often cross each other.
The deepening over the features inherent to the dialogue between word and image was
always a prolific field of discussion, as Simonides1 states. He denominates painting as silent
poetry and, on the other hand, poetry as talking painting. The 20th century is rich in
declarations searching for a bigger relation among different language codes. From René Magritte, who tried to prove that words and images differ in how they are
understood, to Christopher Wool, who, trough a process of taking texts of different sources,
used the repetition and space between words and letters to break their primary meaning. In
spite of the large scope of research developed around this subject, in the context of
contemporary art there are several open lines of investigation following this discussion
between two fields, considered complementary.
What does this mean? How is this defined? What can be seen? What can be drawn out of a
word or of a text? These are some of the fundamental questions in an attempt of reading the
work of Mónica Capucho. These are doubts that take shape in her way of understanding the
ideas enclosed in verbal codes, far from the imagetic materialization, familiar to the onlooker,
a way that goes beyond any verbal barrier.
The comprehension of a work undergoes a series of six steps- look, observe, see, describe,
analyse and interpret. Because we are living the moment, sunk in a continuous present, as
Jameson2 states, Under Pressure invites us to withdraw from the pressure inherent to the
reversal of our own time.
This exhibition seeks to go beyond what is captured at first sight, what can be taken from the
first viewing. Here the onlooker is given an approach through a number of mechanisms that
connect human learning and human understanding, in the knowledge that each person is
made of a complex texture.
In Under Pressure the process of converging the visible and the imagined is very clear, based
on a triad that includes the word, the colour and the texture. This exhibition is directed by the
search of stylistic resources, beneath an idea of replacement and visual reinvention based on
contiguity and similarity.
So, clearly, mechanisms of metaphor and metonymy, common elements in the field of the
word come up, but here they are drawn to the visual field. With this in mind Mónica Capucho
tries to establish a relation of complicity between word and image. So the word becomes
visible and the image becomes textualized in a connection that wears out logic and becomes
an improbable trap for the onlooker.
This connection between word and image, either bi or tridimensional, asks for an effort of
interpretation by the onlooker. Each work exhibited here has the capacity of existing on its
own, in its unity. However it tries to establish new and unexpected readings starting from the
complex relation between the onlooker and the whole.
Under Pressure seeks to write and rewrite the aura of the words, proposing a reflection about
their ability to enlarge, distort, translate or amplify the meaning underlying a set of works
ordered in an unbroken form. This project is composed of a selection of words in which
everything is imagetic, material, visible, making it essential to observe the whole set,
cleansing each part with the purpose of establishing the appropriate articulation among the
various elements. In some of the works an excess of meaning, of comprehension, can occur,
based on what is not written, on what cannot be said, cannot be thought, can only be
suggested.
And if at the beginning of this project we meet the word, at the end an image comes up, an
object or perhaps even a new source of inspiration for the linguistic creation.
1 PLUTARCO. De gloria Atheniensium 3.346f. citado por CAMPBELL, David A - Greek Lyric, Volume III, Stesichorus, Ibycus,. Simonides, and Others. Cambridge: Loeb Classical Library. 1991. p. 363.2 JAMESON, Frederic. El giro cultural: Escritos seleccionados sobre el posmodernismo 1983-1998. Buenos Aires: Manantial. 2010. p. 37.
Uma imagem possível para as palavras.
Por Martim Dias
Toda a palavra tem a capacidade de construir imagens mentais, assim como as imagens
demonstram, em determinados momentos, a necessidade de encontrar justificações verbais
que as integrem, as definam, ou simplesmente lhes ofereçam uma aproximação à
temporalidade pertencente ao campo da palavra. Vivemos submergidos num universo de
imagens e palavras, elementos cujos limites se cruzam com frequência.
O aprofundamento sobre as características intrínsecas ao diálogo estabelecido entre palavra e
imagem foi, desde sempre, um fértil campo de debate, como afirma Simónides1, o qual
denomina a pintura como poesia muda e, por outro lado, a poesia como pintura falante. O
século XX é rico em manifestações que procuram uma maior relação entre distintos códigos de
linguagens. De René Magritte, que procurou comprovar como as palavras e as imagens
diferem nos seus modos de compreensão, a Christopher Wool que, através de um processo de
apropriação de textos provenientes das mais diversas fontes, utilizou a repetição e o intervalo
entre palavras e letras para romper o seu significado primário. Apesar da abrangência das
investigações desenvolvidas em torno deste tema, prevalecem no contexto da arte
contemporânea múltiplas linhas de investigação abertas que procuram prosseguir este debate
entre dois campos tidos como complementares.
O que significa? Como se define? O que se vê? O que se pode extrair de uma palavra ou
texto? Estas são algumas das questões basilares numa tentativa de leitura do trabalho de
Mónica Capucho. São dúvidas que se formam a partir do seu modo de compreender as
ideias contidas sob códigos verbais, longe da materialização imagética que é familiar ao
observador e que ultrapassa qualquer barreira verbal.
A compreensão de uma obra está composta por uma série de seis passos – olhar, observar,
ver, descrever, analisar e interpretar. Num momento como o que se atravessa, mergulhados
num presente contínuo como afirma Jameson2, Under Pressure convida-nos a um
afastamento da pressão inerente à inversão que fazemos do nosso próprio tempo. Esta
exposição procura ir além do que é capturado num primeiro olhar, o que é extraído à primeira
vista. Aqui propõe-se ao espectador uma aproximação através de um conjunto de mecanismos
que relacionam a aprendizagem humana e a compreensão humana, sabendo que cada
indivíduo está constituído como uma textura complexa.
Em Under Pressure é evidente o processo de aproximação entre o visível e o imaginado, com
base numa tríade onde se inclui a palavra, a cor e a textura. Esta exposição está orientada
pela exploração de figuras de estilo, sob uma ideia de substituição e reinvenção visual,
fundamentadas na contiguidade e semelhança. Com isto surgem, de forma clara, mecanismos
próprios da metáfora e da metonímia, elementos comuns no território da palavra, mas que aqui
se estendem ao campo visual. Com isto, Mónica Capucho procura estabelecer um nexo de
cumplicidade entre palavra e imagem, no qual a palavra se visualiza e a imagem se textualiza
numa relação que esgota a lógica e se transforma numa improvável armadilha para o
espectador.
Esta relação estabelecida entre palavra e imagem, seja a mesma bi ou tridimensional,
demanda um esforço interpretativo por parte do espectador. Cada trabalho que aqui se
apresenta tem a capacidade de existir por si só, na sua unidade, sem deixar, contudo, de
procurar estabelecer novas e inesperadas leituras a partir da complexa relação que se gera
entre espectador e conjunto.
Under Pressure procura rever e reescrever a aura das palavras, propondo uma reflexão sobre
a sua capacidade de ampliar, distorcer, traduzir ou amplificar o significado que serve de base a
um conjunto de palavras ordenadas de forma contínua. Na seleção de obras que compõem
este projeto tudo é imagético, matérico, visível, sendo necessário observar o conjunto, depurar
as partes, com a finalidade de estabelecer uma articulação adequada entre os diversos
elementos. No caso de algumas das obras apresentadas pode ocorrer um excedente de
sentido, de compreensão, com base no que não está escrito, no indizível, no que não é
pensado mas sugerido.
E se no início deste projeto nos encontramos com a palavra, no final surge uma imagem, um
objeto, ou talvez uma nova fonte de inspiração para a criação linguística.
1 PLUTARCO. De gloria Atheniensium 3.346f. citado por CAMPBELL, David A - Greek Lyric, Volume III, Stesichorus, Ibycus,. Simonides, and Others. Cambridge: Loeb Classical Library. 1991. p. 363.2 JAMESON, Frederic. El giro cultural: Escritos seleccionados sobre el posmodernismo 1983-1998. Buenos Aires: Manantial. 2010. p. 37.
Una posible imagen para las
palabras
Por MARTIM DIAS
Toda palabra tiene la
capacidad de construir imágenes mentales, así como las imágenes demuestran, en
determinados momentos, la necesidad de encontrar justificaciones verbales que
las integren, las definan, o que simplemente les ofrezcan una aproximación a la
temporalidad perteneciente al ámbito de la palabra. Vivimos sumergidos en un
universo de imágenes y palabras, elementos cuyos límites se cruzan con
frecuencia.
Profundizando sobre las
características intrínsecas del diálogo establecido entre palabra e imagen,
vemos que este ha sido desde siempre un fértil campo de debate. Desde Simónides
de Ceos 1, quien se refiere a la pintura como poesía muda y, por
otro lado, a la poesía como pintura hablante. Hasta el siglo XX, que ha sido
rico en manifestaciones que buscan una mayor relación entre distintos códigos
de lenguajes. Desde René Magritte, que intentó comprobar cómo las palabras y
las imágenes difieren en sus modos de comprensión, a Christopher Wool quien a
través de un proceso de apropiación de textos procedentes de las más diversas
fuentes, utilizó la repetición y el intervalo entre palabras y letras para
romper su significado original. Pero a pesar del alcance de las investigaciones
desarrolladas en torno a este tema, prevalecen en el contexto del arte
contemporáneo múltiples líneas de investigación abiertas, que intentan
proseguir este debate entre dos campos considerados complementarios.
¿Qué significa? ¿Cómo se
define? ¿Qué se ve? ¿Qué se puede extraer de una palabra o de un texto? Estas
son algunas de las cuestiones básicas en un inicial intento de lectura del
trabajo de Mónica Capucho. Son dudas que se forman a partir de su modo de
comprender las
ideas contenidas bajo códigos verbales, lejos de la materialización de las
imágenes que le son familiares al espectador y que sobrepasan cualquier barrera
verbal.
La comprensión de una obra se
estructura en una secuencia de seis pasos: Mirar, observar, ver,
describir, analizar e interpretar. En un momento como el que atravesamos, sumidos en "un presente continuo"
como afirma Jameson2, Still
Under Pressure nos invita a alejarnos de la presión inherente a la
inversión que hacemos de nuestro propio tiempo. Esta exposición busca ir más
allá de lo que se observa en una primera mirada, lo que se extrae a primera vista. Aquí se propone al espectador
una aproximación a través de un conjunto de mecanismos que relacionan el
aprendizaje y la comprensión humana, sabiendo que cada individuo está
constituido como una estructura mental compleja.
En Still Under Pressure, el proceso de convergencia de lo visible y lo
imaginado es muy claro, basado en una tríada que incluye la palabra, el color y
la textura. Esta exposición está guiada por la búsqueda de recursos estilísticos,
bajo una idea de sustitución y reinvención visual, fundamentada en la
proximidad y la semejanza. Con ello surgen, de forma clara, mecanismos de metáfora y de metonimia,
elementos comunes en el territorio de la palabra, pero que aquí se extienden al
campo visual. Con ello, Mónica Capucho busca establecer un vínculo de
complicidad entre la palabra y la imagen, en el que la palabra se hace visible
y la imagen se convierte en texto, en una relación que agota la lógica y se
transforma en una improbable trampa para el espectador.
Esta relación establecida
entre palabra e imagen, sea esta bidimensional o tridimensional, demanda un
esfuerzo de interpretación por parte del espectador. Cada trabajo que se
presenta, tiene la capacidad de existir por sí solo, sin dejar de establecer
nuevas e inesperadas lecturas a partir de la compleja relación que se genera
entre espectador y conjunto de las obras.
Still Under Pressure busca revisar y reescribir el aura de las palabras, proponiendo una
reflexión sobre su capacidad para ampliar, distorsionar, traducir o amplificar
el significado que sirve de base a un conjunto de palabras ordenadas de forma
continua. Este proyecto se compone de una selección de palabras en la que todo
es imagen material, todo es visible, por lo que es esencial observar todo el
conjunto, limpiando cada parte con el fin de establecer una articulación
adecuada entre los diversos elementos. En el caso de algunas de las obras
presentadas puede ocurrir que tengan un exceso de significado, de comprensión,
en base a lo que no está escrito, en base a lo que no se dice, pero se sugiere.
Y si al principio de este
proyecto nos encontramos con la palabra, al final surge una imagen, un objeto, o
tal vez incluso una nueva fuente de inspiración para la creación lingüística.
- - -
1 PLUTARCO. De
gloria Atheniensium 3.346f. citado por CAMPBELL, David A - Greek
Lyric, Volumen III, Stesichorus, Ibycus,. Simonides, y otros. Cambridge:
Loeb Classical Library. 1991. p. 363.
2 JAMESON, Frederic. El giro cultural: Escritos seleccionados sobre el posmodernismo
1983-1998. Buenos Aires: Manantial. 2010. p.37.
______
UNITS OF ORDER | Biblioteca José Saramago | Loures 2016
1
WORDS HAVE FORMS
FORMS HAVE MEANINGS
MEANINGS HAVE FEELINGS
FEELINGS HAVE SENSES
SENSES HAVE COLORS
COLORS HAVE THOUGHTS
THOUGHTS HAVE DREAMS
DREAMS HAVE REALITIES
REALITIES HAVE PATTERNS
PATTERNS HAVE FORMS
2
WORDS TURN TO SIGNS
SIGNS TURN TO IMAGES
IMAGES TURN TO DREAMS
DREAMS TURN TO REALITIES
REALITIES TURN TO THOUGHTS
THOUGHTS TURN TO LANGUAGES
LANGUAGES TURN TO SIGNS
3
CONCEPT LEADS TO IMAGE
IMAGE LEADS TO REALITY
REALITY LEADS TO LIFE
LIFE LEADS TO PEOPLE
PEOPLE LEAD TO EXPRESSION
EXPRESSION LEADS TO ART
ART LEADS TO IMAGE
IMAGE LEADS TO CONCEPT
4
ART FOR THE PEOPLE
WORK FOR THE PEOPLE
MONEY FOR THE PEOPLE
FUN FOR THE PEOPLE
Mónica Capucho
Looking for something
Looking
for something (2015),
de Mónica Capucho (1971), é uma série em que a palavra assume-se
simultaneamente enquanto sujeito e objecto. Esta série consiste num
conjunto de quase uma centena de trabalhos que adoptam formas diversas – ora telas, ora blocos de cimento, ora
blocos de gesso, ora segmentos de madeira, ora acrílico transparente, ora papel. Looking for something parece, a uma primeira
leitura, colocar a palavra no domínio da imagem.
Uma leitura mais profunda da
série permite perceber o mais interessante da sua existência: o conjunto de trabalhos
apresenta-se, por um lado, como investigação
metódica, aos níveis conceptual e formal, sobre algo desejável mas não definido
(something / alguma coisa), e por outro lado, como apelo à relação com o
espectador, pelo confronto perante frases que remetem para questões universais
do comportamento humano. As frases relacionam-se aqui com os materiais em que
são inscritas, acentuando as suas leituras duplas. Trata-se assim, mais do que
explorar os aspectos formais da palavra e da matéria, de hiperbolizar os seus significados
duplos com recurso a comparações que remetem para observações do mundo que nos
rodeia.
A
série Looking for something revela camadas com várias leituras que estão
muito para lá das sucessivas e irrepreensíveis velaturas da tinta que
definem a sua forma. Camada sobre camada, em superfícies espessas, frases sobre
diferentes superfícies e cores, revelam tantas camadas de interpretação quantas
velaturas. Se olharmos para o
momento da arte em que muitos artistas começaram a usar a linguagem como ferramenta, percebemos como o conceito, o processo e a forma se interligam. Por
outras palavras, como a palavra pode ser, simultaneamente, sujeito e objecto,
conceito e forma.
Na
arte conceptual dos anos 60 tornou-se prática comum
juntar texto a objectos, ao género de um dicionário com imagem a que a uma
imagem correspondia um texto explicativo. Artistas como René Magritte, usaram o
texto como anti-arte ou enquanto sentimento anti-estético, numa rejeição clara
aos convencionalismos artísticos da época. Nas décadas mais recentes, artistas
como Lawrence Weiner, Bruce Nauman, Douglas Gordon e John Baldessari começaram
a usar a palavra enquanto trabalho artístico per se. Na arte contemporânea, a palavra tem sido ferramenta para
explorar ideias tão diversas como a passagem do tempo; a evolução ou
comportamento de um material sobre suportes como papel, pedra e parede; a
construção de mensagens tão, aparentemente, absurdas quanto irónicas de
observações que nos deixam num impasse entre o riso e a reflexão crítica; e o
confronto directo com o observador provocando uma resposta imediata. E é precisamente neste modus operandi,
entre reflexão sobre a matéria e observação dos comportamentos sociais e
humanos, que o trabalho de Mónica Capucho assenta e onde reside o seu fascínio.
O seu trabalho, na diversidade
dos materiais e suportes que utiliza, define situações que convocam o
espectador para a redescoberta da palavra e dos seus significados múltiplos
através de referências às memórias colectivas que por elas trespassam. Todos os trabalhos da série Looking for something, independentemente
da matéria que os forma, são habitados por frases pintadas em letras maiúsculas
de um mesmo alfabeto sem patilha, que começam, invariavelmente, por Looking for. Trata-se de uma procura sistemática
de um qualquer objecto de desejo com a indefinição inerente à ideia de
“something”. Por outras palavras, trata-se de procurar e desejar qualquer coisa,
sem saber exactamente como definir aquilo que se deseja.
O
conjunto de peças verticais, de 200x5x4 cm, pintadas nos opostos preto /
branco, colocam-nos perante mensagens opostas mediante a posição em que
estamos. Ora lemos as frases Looking for black, com a dificuldade de
legibilidade imposta pela pintura a preto sobre preto, ora Looking for white,
com a mesma legibilidade difícil, a branco sobre branco; ora Looking for visibility
com letras brancas no grau máximo de visibilidade, pelo contraste com o fundo
preto, ora Looking for invisibility, pintada a branco sobre fundo
branco, recusando quaisquer contrastes visuais; ora Looking for
disorder, ora Looking for order; ora Looking for more, ora Looking
for less. Somos assim confrontados, preto no branco, com a permanente insatisfação
e os sentimentos contraditórios que nos caracterizam enquanto seres humanos
inseridos numa sociedade contemporânea.
As palavras da série Looking
for something nem sempre são visíveis a um primeiro olhar. O conjunto de peças
horizontais de 5x100x4 cm, pede-nos tempo, já que a legibilidade estará sempre condicionada
às condições de luz e sombra inerentes ao espaço e da posição do espectador em
relação aos objectos. Muitas vezes, as palavras aparecem pintadas na mesma cor numa
tonalidade ligeiramente mais clara ou mais escura que a cor do fundo ou diferenciadas
apenas por uma textura diferente. Outras vezes, surgem - palavras e fundo -exactamente
na mesma cor, tom e textura pedindo ainda mais atenção de quem as observa. Frases
como Looking for balance e Looking for support são pintadas a azul
sobre azul; a branco sobre branco desvendam-se frases como Looking for white; Looking for heaven e Looking for discretion; a preto sobre preto Looking for rationality e Looking
for mistery; a cinzento sobre cinzento Looking
for silence; Looking for simplicity e
Looking for sensitivity e a vermelho sobre vermelho podemos ler frases como
Looking for red e Looking for love. Se umas vezes as palavras
remetem objectivamente para as cores com que são pintadas, outras vezes apelam
para o campo subjectivo das emoções que Mónica Capucho associa às cores,
concedendo-lhes significados duplos como em Looking
for justice pintada a preto sobre preto, num comentário irónico à justiça
do tempo em que vivemos.
No mesmo conjunto de peças
horizontais, há também frases que parecem saltar do fundo, pela força do
contraste de cores a que se associa a força ou a ironia das mensagens: Looking for trouble pintada a preto
sobre vermelho; Looking for intensity
pintada a azul sobre o seu oposto, o laranja próximo do vermelho; Looking for uniqueness pintada a preto
sobre fundo cinzento; Looking for
isolation a preto sobre azul. Em qualquer uma das composições, parece
sempre que as pinturas assumem uma personalidade própria com as quais nos
identificaremos mais ou menos, mediante a nossa própria personalidade.
Numa série anterior, Banded Apparatus (2012), Mónica Capucho
escolheu dar instruções precisas sobre o que podemos ver – one gray stripe, pintado a cinzento sobre uma tira igualmente
cinzenta, com 5x100x4 cm; twenty gray
stripes, pintada a cinzento em uma das vinte tiras de diferentes
tonalidades de cinzento com intervalos de tiras brancas. Aqui, as frases
pintadas por cima das telas, descreviam-nas
factualmente num processo reminiscente de One
and Three Chairs (1965) de Joseph Kosuth.
Em Looking for something, a matéria é tratada com o mesmo rigor das
séries anteriores, o que implica enorme conhecimento e mestria técnica.
Contudo, já não se trata tanto da reflexão sobre aquilo que vemos
objectivamente ou do que é feito aquilo que vemos (como nos seus trabalhos de
2000, em que as palavras correspondiam ao nome técnico da tinta com que eram
pintadas) mas muito mais de jogos de palavras, muitas vezes complexos e sempre
numa relação de subjectividade perante o mundo que nos rodeia.
A materialidade da madeira dos
trabalhos , de 185x200cm, da série Looking
for something é reforçada pela técnica, com verniz que lhe desvenda os veios,
e com as frases que servem, simultaneamente, de descrição do suporte – Looking for wood; Looking for nature – e de duplo sentido para o que a ideia desta
matéria remete – Looking for simplicity.
As palavras são, na sua etimologia (do Grego, parábola),
poderosas construções comparativas. É da configuração da palavra como comparação
com algo vivenciado que nasce o trabalho de Mónica Capucho, muito mais do que das
formas das letras, das palavras e das frases. É assim, mais da ideia de que as palavras
são dispositivos que geram uma articulação de vivências subjectivas a partir de
um conjunto de observações sociais e menos a partir de uma estética das palavras
enquanto organização visual que as suas composições se desenvolvem.
O trabalho de Mónica Capucho assenta no jogo da
recepção, na medida em que todo o leitor reinterpreta, mas segundo
possibilidades colocadas no texto, como implicou Mallarmé com a sua poesia
simbolista. As peças de
cimento, de acrílico, e de gesso, horizontais, de 5x100x4 cm, são exemplares no
modo de construção das frases e das palavras que as habitam, com um apelo forte
ao acaso, ao jogo e à ironia. Quando lemos Looking
for concrete sobre cimento, Looking
for transparency sobre acrílico e Looking
for matter sobre gesso, é difícil escaparmos à interpretação e à relação
com a existência - ou o desejo dessa existência – de alguma coisa concreta,
transparente e com importância no nosso quotidiano. As possibilidades de
interpretação serão tantas quantas pessoas lerem.
O que o processo compositivo da
série Looking for something
estabelece, em última instância, numa máquina irónica sobre a multiplicidade de
significados da palavra e dos pensamentos que a originam, é a impossibilidade
de textos definitivos. Tratam-se de exemplos de propostas que somadas, nas suas
interpretações possíveis, traduzem uma ideia abstracta de linguagem. Estamos
assim perante composições, interpretações e abstracções que são tão inerentes
ao processo de construção de memórias colectivas que formam a sociedade como
aos processos da arte, num constante limbo entre subjectividade e objectividade,
entre conceito e forma.
- Luísa Santos
Agosto 2015
Mónica Capucho
Looking for something (2015) by Monica capucho (1971)
is a series in which the word comes forward both as subject and as object. This
series consists of a set of almost one hundred works using different materials
– canvases, concrete blocks, plaster blocks, wood sections, see through acrylic
or paper. Looking for something seems, on a first reading, to set the
word in the field of the image.
A deeper reading of the series,
however, allows a better understanding of the greater interest of its
existence: the set of works appears, on one hand, as a methodical search, both
at conceptual and formal levels, for something desirable yet not defined
(something); on the other hand as an appeal to a relation with the looker-on
through comparison of sentences that send to universal problems of human
behaviour. The sentences are here related to the materials where they are
inscribed, therefore emphasizing their double readings. More than exploring the
formal aspects of the word and the material used, the purpose is to accentuate
their double meaning, resorting to comparisons that send us back to
observations of the world around us.
The series Looking for something
reveals layers with various readings that go far beyond the successive and
irreprehensible layers of paint defining its form. Layer upon layer, in dense
surfaces, sentences on different surfaces and colours reveal as many layers of
interpretation as layers of paint. If we look at that moment in art when many
artists began to use language as a tool, we will understand how concept,
process and form are linked together. In other words, we will understand how
the word can be, at the same time, both subject and object, both concept and
form.
In the conceptual art of the
sixties it became common practice to add text to objects, like a dictionary
with a picture, where to each picture corresponded an explaining text. Artist
such as René Magritte used text as an anti-art or as anti-aesthetic feeling, in
a clear rejection of the artistic stipulations of that time. In more recent
decades, artists such as Lawrence Weiner, Bruce Nauman, Douglas Gordon and John
Baldessari, began to use the word has an artistic work, per se. In
contemporary art, the word as been the tool to explore ideas as different as:
the passing of time; the evolution or behaviour of a material on surfaces such
as paper, stone or wall; the construction of massages, apparently as absurd or
ironic, of observations, leaving us between a laugh or a critical reflection;
and the direct confrontation with the looker-on, causing an immediate response.
And it is precisely in this modus operandi, between reflection about the
material and observation of social human behaviour that Mónica Capucho’s work
lies and there dwells its fascination.
Her work, in the variety of
materials used, defines situations appealing to the looker-on to re-discover
the word and its multiple meanings, through references to the collective
memories they embody. All the works in the series Looking for something, besides
the material giving then form, are inhabited by sentences painted in capital
letters of the same alphabet. They start invariably by Looking For. It
is a systematic search for a desirable object, yet not defined, as the idea of Something
conveys. In other words, it is all about searching and wanting something
without knowing exactly how to define it.
The set of vertical woks, 200X5X4
cm, painted in the opposites black/white, places us in front of opposing
messages, according to our position. We either read the sentences Looking
for black with the difficulty added by the painting of black letters on
black background, or Looking for white with the same problem resulting
from white letters painted on a white background; or Looking for visibility with
white letters, very clear by contrast on a black surface; or Looking for invisibility,
painted white on a white background, refusing any visual contrast; or Looking
for disorder, or Looking for order; or Looking for more or Looking
for less. We are thus confronted clearly with the permanent dissatisfaction
and contradictory feelings proper to human beings living in a contemporary
society.
The word of the series Looking
for something are not always visible at first sight. The set of Horizontal
works, 5X100X4cm, demands time, since the legibility is conditioned by light
and shade of the area and by the position of the looker-on in relation to the
objects. The words are often painted in the same colour of the background, only
slightly darker or lighter, the difference being only in the textures of both
letters and background. Other times words and background appear in exactly the
same colour, shade and texture, requiring an even greater attention. Sentences
such as Looking for balance and Looking for support are painted
blue on blue; painted white on white one uncovers sentences such as Looking
for white, Looking for heaven and Looking for discretion;
painted black on black Looking for rationality and Looking for mystery;
painted gray on gray Looking for silence, Looking for simplicity
and Looking for sensitivity; and painted red on red we can read
sentences such as Looking for red and Looking for love. If
sometimes words are objectively connected with the colours used, other times
they appeal to the subjective field of emotions that Mónica Capucho associates
with the colour, giving then a double meaning, as in Looking For Justice
painted black on black, in an ironic remark about the justice of the times we
live in.
In the same set of horizontal
works there are also sentences standing out from the background by the use of a
strong colour contrast, associated with the strength or irony of the messages: Looking
for trouble, panted black on red; looking for intensity, painted
blue on its opposite colour, orange near red; Looking for uniqueness
painted black on gray; Looking for isolation, painted black on blue. In
all these compositions it looks as if each painting takes over its own
personality, to which we would more or less identify ourselves according to our
respective personalities.
In a former series Banded
Apparatus (2012), Mónica Capucho chose to give precise instructions about
what we could see – One gray stripe, painted gray on an equally gray
stripe, 100X5X4cm, Twenty gray stripes painted gray in one of the twenty
stripes in several shapes of gray, interspersed with white stripes. Here the
sentences painted on the top of the canvases, described them objectively in a
process that reminds us of One and Three Chairs (1965) by Joseph Kosuth.
In Looking For Something the
material is treated with the same precision of the former series, witch implies
a vast knowledge and technical mastership. However it no longer is a reflection
of what we objectively see or of what the work we see is made of, (as in her
works of 2000, where the words used corresponded to the technical name of the
paint). It consists much more of playing with words, sometimes rather
complicated and always in a relation of subjectivity before the world
surrounding us.
The texture of the wood works,
185X200cm, of the series Looking for something is reinforced by the
technique of applying a varnish to enhance the wood veins. The sentences used
describe the material Looking for wood, Looking for nature and at
the same time have a double meaning pointing to the idea of this material – Looking
for simplicity. Words, from their etymology (from Greek, parábola) are
powerful comparative constructions. It is from comparing the word with
something experienced that Mónica Capucho’s work springs, so much more than
from letters, words, sentences. It is so much more from the idea that words are
vehicles generating an articulation of subjective experiences coming from
word-aesthetics as a visual organization, that her compositions develop.
Mónica Capucho’s work is based on
the game of reception, since every reader reinterprets, according to the
possibilities set in the text, as Mallarmé implied with his symbolist poetry.
The concrete, acrylic and plaster horizontal works, 5X100X4cm, are exemplary in
the way of constructing the sentences and words that live in them, with a
strong appeal to chance, play and irony. When we read Looking For Concrete on concrete, Looking For Transparency on acrylic or Looking for Matter on Plaster, it is difficult to escape interpreting
and relating to the existence – or the desire for that existence – of something
concrete, transparent and important in our daily lives. Interpretation
possibilities are as many as the readers.
Last but not the least, what the composition
process of the series Looking for something establishes, an ironic
machine of multiple meanings of the word and thoughts that gave birth to it, is
finally the impossibility of definitive texts. It is all about examples of
proposals which, together with their possible interpretations, translate an
abstract idea of language. We are thus facing compositions, interpretations and
abstractions that are as inherent to the process of building the collective
memories forming society as the processes, memories forming society as the art
processes, in a constant limbo between subjectivity and objectivity, between
concept and form.
Luísa Santos
Agosto 2015
Tradução:
Conceição Corte-Real
SENSE & SENSIBILITY
Abstract. This paper is
about the relation visible/legible implied in the painting/in-scripture
gesture, characteristic of paintings by Mónica Capucho. It also indicates the
creativity games underlying all possibilities of pictorial accumulation by
layers, and the mise-en-abyme made visible throughout
site-specific installations.
Keywords: painting, visible/legible, installation, grid, game.
Resumo. Este artigo
trata a relação visível/legível proposta no pintar/inscrever que caracteriza a
pintura de Mónica Capucho. Aponta ainda os jogos criativos do seu trabalho: as
possibilidades pictóricas da sobreposição e o mise-en-abyme da grelha,
visível nas instalações site-specific.
Palavras-chave:
pintura, visível/legível, instalação, grelha, jogo.
Introdução
Este artigo incide sobre a pintura de Mónica Capucho. Nascida em Lisboa
em 1971, está representada nas galerias Quadrado Azul e CC – Arte
contemporânea. O seu percurso de aprendizagem artística inicia-se na escola
ARCO em 1988. Entre 1990-1993 reside em Bruxelas onde faz o curso intensivo de
pintura na Escola de Artes Plásticas ALPACA e um estágio com o escultor Francis
Tondeur. Em 1998, licencia-se em Pintura pela FBA-UL.
Figura 1. Objective and
intentional (da série Objective
paintings), 2006, técnica mista,
30x45x6cm.
A aplicação de vernizes (brilhantes/baços) sobre o mesmo pigmento
garante-lhe plasticidades distintas, nomeadamente a sensação ocular de
profundidade e/ou superfície que abre o espaço da perspectiva na pintura. Este
método pode ser pensado como “marca d’água” – termo originalmente aplicado à
folha de papel para designar o desenho visível à transparência, que resulta das
diferentes densidades e espessuras dessa folha. É “marca” pela aplicação
sistematizada tornada estratégia plástica expressiva (Telles de Menezes, 2009,
p.8). É “d’água” pela associação ao molhado, à tinta fresca que o brilho
convoca, por oposição e contraste com a tinta mate, seca e opaca. O brilhante é
reflexivo, luminoso, profundo. O mate tem características de superfície, de
primeiro plano. Justapostos iludem profundidade. “Marca d’água” é, ainda,
metáfora para as relações finura/espessura, bi/tri dimensionais,
plano/saliência, postas em constante diálogo na sua pintura. Nos caracteres –
cujo corpo da letra é corpo de tinta, corpo em espessura conseguido pela
densidade pastosa do médium – cada
letra, termo, frase salienta-se na superfície de representação (Figura 6) e,
paralelamente, também a espessura da grade acrescenta uma dimensão escultural
ao pintado.
Figura 1. Objective and intentional (da série Objective paintings), 2006, técnica mista, 30x45x6cm.
<!--[if !vml]-->
Colecção particular. Fotografia da artista.
2. “The
right combination of different elements can provoke a feeling of completeness”.
Sense & sensibility (título tomado a Jane Austin) indica as
duas características definidoras deste jogo criativo. A articulação entre a
sensibilidade, propriamente sensitiva, dos sentidos da percepção, e o sentir
enquanto pathos (das paixões, dos
gostos, dos desejos) é doseada e reflexiva. É doseada a capacidade
interferencial da inscrição na percepção do pictural, pela introdução de um
enunciado na superfície pictórica, que sublinha ou desvia sentidos e
influência, indica, dirige e manipula o observador. É reflexiva porque joga com
os campos imagéticos próprios de cada uma das suas componentes, numa contaminação
essencial que faz reverberar o visível no legível, e vice-versa. A linguagem
abre o seu campo imagético: articulando-o na e como pintura, amplia a
experiência de fruição.
Figura 2. Objective paintings, 2006, técnica mista, dimensões variáveis de
montagem.
Colecção particular. Fotografia da artista.
3. “In my mind the idea of an
organizational structure is continually growing”
Em Objective paintings (Figura
1 e Figura 2) os enunciados – irrepetíveis – obedecem à fórmula da dupla
adjectivação. Inscrição/fundo são articulados segundo os contrastes
fundamentados da teoria das cores.
Esta instalação implica uma organização espacial ortogonal – opção
recorrente – e releva de uma outra figura geométrica: a grelha. Construída no
afastamento que individua e demarca cada peça, no desenho branco da
parede/suporte, passa de esquema de organização (criado na manutenção das
distâncias entre as peças) a figuração pictural, propondo-se como mise-en-abyme. Contudo, Reason from within recusa múltiplos
enquadramentos: dá a ver-se simplesmente, ou antes, infinitamente (Figura 3).
A inscrição
pintada congrega funções de enunciado, legenda e título. Ao contrário de outros
trabalhos (onde ocupa a posição central e destacada como figura principal,
assunto da pintura), aqui coloca-se no limite: afasta-se do protagonismo,
desloca-se discretamente em direcção ao invisível. A elaboração cuidadosa desta
composição (posição, linguagem, idioma) actua directamente na percepção visual:
o olhar oscila entre ver e ler.
Figura 3. Reason
from within, 2007, técnica
mista, 100x100cm.
Colecção
particular. Fotografia da artista.
4. “Geometric patterns can evoke a
rational need to escape from the reality”
A figuração geometrizada
da superfície espessa-se por camadas sucessivas de tinta, que se
sobrepõem sem se cobrir totalmente. O corpus
pictórico constrói-se pelo excesso deste fazer, nesta acumulação por layers. A máscara (dispositivo técnico)
possibilita o jogo (estrutural) mostrar/esconder. Paralelo à própria lógica do
desejo, do jogo erótico (ocultar/exibir), e como estrutura de manifestação da
verdade, este jogo é o de toda a criação, na medida em que entre guardar e
revelar, entre esconder e pôr em evidência, cria-se expectativa e curiosidade
no observador.
O tempo é imprescindível neste fazer pintura, neste escrever pictórico.
Um último gesto processual inscreve: a pasta preenche cada traço exigindo
precisão e rigor na aplicação. Acresce ao fundo geometrizado e faz crescer
“qualquer coisa” na pintura. Este “qualquer coisa” é o ampliar da pintura pela
articulação cores/palavras: vai exigir um tempo para ver que inclui o tempo de
ler. Isoladas, as frases são statments.
Como pintura surpreendem: cada
pintura parece dizer o mesmo mas mínimas alterações garantem
um dizer outro.
A repetição é, aqui, da ordem da alteração: repete-se para ficar
diferente, para individuar. Na aparente similitude apreende-se a fórmula e,
simultaneamente, percepciona-se o que individua: um jogo de estratégias subtis
altera o mesmo em direcção ao diferente. Declinações, variações, desvios,
repetições introduzem-se na regra como estratégia criativa e/ou de
representação desta encenação da ordem.
Figura 4. Origina e Similar (da série “Original/forgery”), 2006, técnica mista, 40x45x4cm +
40x45x4cm.
Colecção da artista. Fotografia da
artista.
5. “Emotions follow a complex set
of tensions between concept versus
image”
O re-dobrar/des-dobrar do real é uma problemática antiga. A série original/copy (Figura 4), paradigmática
do jogo das aparências, ficciona a cópia pela repetição. Da ordem da alusão
(eco da oralidade, reflexo da visibilidade), a cópia é pensada como
re-figuração – como repetição da representação primeira – como captura da
aparência do que é autêntico.
Todas as pinturas têm igual presença, importância e cuidado na
representação. Contudo, a inscrição remete-as para planos distintos, planos que
são critérios de avaliação, de julgamento (múltiplo/original, ilusório/real,
falso/verdadeiro, repetido/singular, enganador/autêntico, representação/presentação,
cópia/modelo). Este envio perverso é uma artimanha da linguagem. O espaçamento
horizontal separa as “original” (em
cima) das “copy” (em baixo); acentua
o jogo de antónimos: por cima significa superiormente colocado em
relação a, que evidencia metáforas. Por
cima é o espaço celestial, o mundo elevado das ideias. Alude a Platão, que
coloca o modelo e a cópia nos antípodas um do outro. Por baixo, num jogo sinonímico, estão os enunciados que duplicam,
repetem, ecoam, reflectem o modelo como outro.
6. “Different sensibility comes
from an intuitiveness founded in the imperfections of our mind”
Duas fórmulas dividem a representação dos enunciados: Monocromática
(Figuras 1, 4 e 5) – cada termo transparece num apagamento que dá lugar ao
sentido: a leitura é fácil – Ou policromática (Figura 5) – a plasticidade
sobrepõe-se à legibilidade (Lyotard, 1971, p.79). No monocromatismo absoluto
(Figura 6), a letra camufla-se, os enunciados dão-se a ver/ler pelos jogos
transparente/opaco das tintas e reflexão/absorção da luz/sombra (própria e
projectada) dos relevos.
Figura 5. Original (pormenor), (da série “Original/forgery”), 2006, técnica mista, 40x45x4cm.
Colecção da
artista. Fotografia da artista.

Figura 6. knowledge (da série “Words”),
2005, óleo sobre tela, 30x60x4cm.
Colecção da artista. Fotografia da
artista.
Conclusão
Na pintura de Mónica Capucho perpassa um sentido objectual que reside no
rigor de um fazer táctil que dá a ver, e a sentir pelo olhar, o jogo das
texturas, dos relevos, dos brilhos. Equaciona figuração geometrizada e
inscrição pintada na representação/ apresentação da pintura. À morfologia das
letras (direcções, curvas, distâncias e relações-entre, que as individuam) a
artista aplica uma fórmula: o quadrado enforma o desenho numa nova tipo-grafia. No primeiro plano, cada
termo transparece em direcção ao visível para logo desaparecer no lugar do
significado. Do tratamento plástico destes caracteres depende a
facilidade/dificuldade da leitura: quando a escrita se encena pintura, o
enunciado dilui-se na sua morfologia pintada, no corpo espesso da tinta, no
irreconhecível.
Referências
CAPUCHO,
Mónica: www.mónicacapucho.com
LYOTARD,
Jean-François, Discours Figure,
Paris, ed. Klincksieck, coll. d’esthétique, 1971 (1ª edição). ISBN : 2 252
03368 2.
TELLES DE MENEZES, Salvato, Introdução, in Under
deconstruction: Mónica Capucho/ De la expresíon al contenido: Ana Sério,
Valência, Edições IVAM, 2009. ISBN: 978 8448253431
M.P. Prieto - Ema M.
12/2011
BANDED APPARATUS & PAPERWORK
Exposição
(dupla) individual de pintura de Mónica Capucho
Galeria Dois Paços, Torres Vedras
Abril/Maio de 2012
Mónica Capucho é uma artista de uma
enorme coesão na sua proposta pictórica. No seu trabalho, a poïesis – quer dizer, a capacidade
criativa – dá a ver-se como pintura. Uma pintura em potência porque traz
consigo enunciados que a carregam de significados. Este carregar é como uma
carga, uma força, que se inscreve como linguagem mas ultrapassa em muito a
formulação linguística. Ultrapassa pelo gesto com que se inscreve, no próprio
pintar de cada letra, na espessura de tinta que sobressai da superfície, do
pigmento escolhido e na íntima relação de acumulação de enunciados linguístico
e pictórico (seguindo os termos da semiologia).
Banded Apparatus é, antes de mais, uma proposta
transtextual uma vez que relaciona o texto (linguagem), o pintado (pintura) e o
ritmo (música): o texto, pela inscrição vertical em cada pintura a destacar
cada letra de uma frase tipo (número
cor forma); o pintado, como meio escolhido pela artista para essa inscrição; o
ritmo na proposta sequencial da instalação.
É na matriz da frase (número, cor,
forma) que se encontra a chave destas combinações. O número está implícito no
ritmo, impõe-se como pensamento matemático patente na organização do espaço e
do tempo em partes (proporções). É essa a experiência in situ desta exposição: uma dança sobre a parede branca (em vez do
chão) porque se destina ao olhar. Nesta dança a artista convoca o branco da parede
como uma risca mais a participar no aparato. Da proporção e do ritmo nasce a
forma e a fórmula: rectângulos verticais criam um aparato de tiras coloridas: Banded Apparatus. O título da
exposição não é apenas descritivo é também enunciado poético que celebra a
festa da Inauguração. Inaugurar significa fazer como da primeira vez, repetir a primeira vez, ao mesmo tempo que celebra o factum est do trabalho artístico. Assim, a festa é inseparável do
ócio como celebração do que foi feito. A ociosidade festiva contém uma dimensão
essencial da praxis em que o simples
fazer quotidiano não é negado nem abolido, mas apenas suspenso e tornado
ocioso. A conclusão deste trabalho criativo consiste na festa da sua exibição,
pelo ócio do criador. A inauguração é a festa da ociosidade onde se exibe o que
foi criado pois, então, o criador oferece aos outros o seu trabalho.
Para além do enunciado genérico,
existem enunciados pintados onde as pinturas se descrevem, apontam-se umas às
outras ou para si mesmas: duplicam-se pela linguagem (aparentemente).
PaperWork é uma série de pinturas sobre papel
onde a inscrição pintada faz referência ao limite que separa o enquadramento da
tinta e a superfície suporte. A inscrição parece repetir uma fórmula e,
contudo, ora indica, ora mostra, ora coloca um problema ao nível da percepção.
A aplicação de uma mesma cor na inscrição facilita a leitura e cada termo
torna-se transparente, desaparece para dar lugar ao seu sentido. Mas,
exactamente porque «Ceci n’est pas une
pipe» ou, nos termos da artista, o enunciado «gray» é inscrito numa outra
cor que não o cinzento, cria-se um conflito perceptivo entre o que se vê e o
que se lê. Este conflito é manifesto sobretudo ao nível da memória, quando a posteriori, e na tentativa de recordar
uma destas obras, cada visitante saberá se é leitor ou observador, justamente
porque como leitor se lembrará da cor inscrita, e como observador recordará o
pigmento da inscrição.
M. P. Prieto / Ema M.
Lisboa, 10 de Março de 2012
Mónica Capucho is an artist who shows an admirable
cohesion in her pictorial proposal. In her work the poïesis – meaning the creative talent is translated as painting. A
painting enhanced by the other meanings brought along. This acts as a load, a
strength witch goes, by far, beyond the linguistic expression. It goes beyond,
through the gesture applied in the painting of each letter, in the thickness of
paint that stands out against the surface, in the pigment chosen and in the
intimate relation of the gathered linguistic and pictorial expressions
(following the semiology terms).
Banded Apparatus is, above
all, a transtextual proposition since it relates text (language), paint
(painting) and rhythm (music). Text, trough the vertical inscription, in each
painting, bringing out each letter or a phrase (number, colour, form); paint,
as the means chosen by the artist for that inscription; rhythm, through the
sequential proposal for the installation.
In
the source of the phrase (number, colour, form) can the key to these
combinations be found. The number is implied in the rhythm, it imposes itself
as mathematical thinking, partly visible in the organization of space and time.
This
is the experience in situ of the
exhibition: a dance on a white wall (instead of on the floor), since it is
meant for the eyes. In this dance the artist summons the white colour on the
wall as another band to become part of the apparatus. From the proportion and
the rhythm comes out the form and the formula: vertical rectangles create an
apparatus of coloured bands: Banded
Apparatus. The title for the exhibition is not only a description but also
a poetical expression celebrating the festivity of the Opening. To inaugurate
means to do as for the first time, as if it were, repeat for the first time and
simultaneously celebrate the factum est of
the artistic work. In this way festivity cannot be disconnected from leisure as
a celebration of the work done. The festive leisure encloses an essential
dimension of the praxis in which the
plain daily work is neither denied nor abolished, but only suspended and turned
idle. The conclusion of the creative work consists on the celebration of this
exhibition by the creative leisure. The inauguration is the celebration of
leisure where what was created is presented when the creator offers the others
his work.
Beyond
the generic enunciation there are painted presentations in which the paintings
are self- descriptive, pointing to each other or to themselves: they
(apparently) double themselves through the use of language.
Paperwork
is a serious of paintings on paper where the painted inscription makes a
reference to the limit separating the framing of the paint from the supporting
surface. The inscription seams to repeat the formula but, however, it either
indicates, or shows, or poses a problem at the level of perception. By applying
the same colour on the inscription it makes the reading easier and each term
becomes transparent, it disappears to give way to its meaning. But exactly
because “ceci n’est pas une pipe” or,
in the artist’s words, the enunciation “gray”
is inscribed on a colour which is not gray,
a perceptive conflict arises between what is seen and what is read. This
conflict is apparent above all at the level of memory when, a posteriori, and in trying to remember
one of these works, each visitor will know if he is a reader or an observer. In
the first case he will remember the colour inscribed and in the second one he
will remember the colour of the inscription.
Possessive Statement
Consta numa das etapas das Expositions des Arts Incohérents, em
1983, Alphonse Allais terá exibido uma das primeiras manifestações do espaço
vazio na história da arte. Apresentou então uma moldura sem tela, a que deu o
título Tableau d’à Venir. Desde
então, têm sido muitas as formas de o vazio se manifestar, desde a galeria
vazia com a montra vazia de Yves Klein, à declaração de Ben N’Expose Pas, de Ben Vautier. A ausência ainda preenche muitas
propostas de arte contemporânea, aliás.
A exposição que Mónica
Capucho apresenta agora segue essa linha, mas incute-lhe uma variação
fundamental: a da posse. Começa com uma sequencia de 36 peças em mdf pintadas
com várias cores. Estão quase todas dispostas em grandes quadrículas, realçando
o vazio que deixam nas paredes brancas. Cada uma delas tem inscrito uma negação: “It Doesn’t Have To Be Like
This”, numa das peças, ou “It Doesn’t Have To Be Serious”, numa outra cinzenta,
são alguns exemplos. Têm jogos de significados que tanto nos confrontam com
cada uma das peças como com toda a exposição.
Porém, após várias
conjugações, estas peças passam a uma fase em que o vazio predominante se chega
ao preenchimento e ao padrão, nas várias acepções do terno. Aí encontram-se
cinco telas, de183x183 cm também acompanhadas (confrontadas?) por uma peça de
mdf pintado e outras negações inscritas (como “It Doesn’t Have to Be Square”,
por exemplo). São telas ocupadas por padrões, obtidos através de um método a
que Mónica Capucho gosta de chamar “instinto racional”. A forma como estes
padrões preenchem o vazio é notória, remetendo também para as convenções do que
poderá ser uma “obra de arte”, enquanto objecto de posse e transacção.
A última obra desvenda toda
a exposição. É novamente uma peça em mdf, desta vez isolada, colocada na
horizontal e num ponto alto da parede. É a única que contem uma afirmação: “It
Just Have To Be Mine”, que é uma declaração de posse totalizadora.
Ben Vautier complementou o
seu Ben N’ Expose Pás com um Ben
Expose Partou, assim como a única forma
de Arman conseguiu encontrar para responder ao Le Vide de Yves Klein foi o de atafulhar a mesma galeria com
tralha. Chamou-lhe Le Plein.
Sérgio Gomes da Costa
01/07/2010
Uma questão de pormenor
Durante séculos, a função da pintura foi de contar histórias. Santos, santas, animais, personagens mitológicas, retratos de reis e rainhas, auto-retratos de artistas, até, falavam, para alem ou através da riqueza de cor e luz, dos modos de representar, apropriar e dar a ver o espaço, de uma narrativa implícita: a da mestria de quem fazia, a do poder de quem encomendava e, à medida que a contemporaneidade ia chegando, a história sempre complexa, íntima, pessoal e cada vez mais óbvia do próprio artista.
Perante a pintura de Mónica Capucho, que não conta histórias mas que se serve de matéria – prima dessas narrativas para existir, é legitimo recordar essa função antiquíssima da arte. Tudo se passava, no modo antigo de conceber o mundo, como se a multiplicidade de imagens se acrescentasse pouco a pouco à fragmentação do mito. Cada história contada (ilustrada) materializava-se porque havia um pensamento anterior, primordial, que se duplicava e reflectia especularmente nela. Por exemplo: se As Meninas de Velásquez são, alem de um ponto fulcral da história da pintura, a representação figurada da omnipresença do olhar do rei (do poder do rei) no mundo, essa representação foi possível porque a teoria política barroca assim o tinha previamente determinado. Um artista não é um mero propagandista, mas tudo o faz, porque tudo se insere num circulo económico definido num dado tempo histórico, é passível de leitura politica.
Regressando às Meninas, o quadro de Velásquez não seria o mesmo sem a leitura do pormenor da imagem dos reis vistos no espelho. É esse pormenor, que ainda hoje só é perceptível por quem mantenha o dom raro de saber ver ou quem conheça a célebre interpretação de Foucault, que dá todo o sentido à pintura. Pintura essa que, aliás, se destinava a reflectir em todo o momento o poder de quem a via: destinada ao palácio real, não seria, como hoje é, objecto de visita apressada pelas multidões que percorrem o Museu do Prado. Digamos que, aqui, o pormenor é elevado à categoria de chave para abrir o sentido da pintura (ao mesmo tempo que um outro pormenor, aliás. O da personagem em pé na abertura da porta, permanece uma incógnita). Nem sempre foi assim; mas pode dizer-se que, para um artista, o pormenor nunca é insignificante. Recordo, por exemplo, os insectos que esvoaçam no meio das naturezas mortas holandesas do século XVII. E que acrescentam sentido à leitura simbólica da riqueza terrena em decomposição que essas pinturas muitas vezes possuíam; ou o gato aterrorizado numa Anunciação de lourenzo Lotto que parece saltar para fora do próprio suporte da pintura, sinal simultâneo da perícia do pintor e da humanidade de Maria que se sobressalta com a visita do anjo.
Assim o pormenor é feito para ser visto, ou melhor, descoberto. Trata-se de uma espécie de prémio que é concedido à capacidade de ver, partindo do pressuposto, com se fazia antes da modernidade, que essa capacidade dependia da vontade do espectador. Hoje, é antes o corpo desse mesmo espectador que está em casa nos limites que os órgãos dos sentidos lhe impõem, e também nas próteses de todo o género que se inventam para os superar.
Considere-se assim a pintura de Mónica Capucho. Trata-se de telas em que a materialidade do objecto é acentuada pela utilização restrita e texturada da cor. Em primeiro lugar, um jogo erudito e tecnicamente irrepreensível de velaturas sucessivas permite criar superfícies espessas, como se tratasse de esculturas, ressalvando sempre o facto de que a cor e a técnica usadas classifica indubitavelmente estes objectos dentro da disciplina da pintura. Contudo, essa primeira hesitação que o espectador sentirá perante o que vê – trata-se de escultura pendurada na parede, ou de pintura que, em vez de representar o espaço tridimensional, o capta na sua própria essência? – anula-se perante o facto de todas as obras apresentarem palavras escritas. A hesitação entre pintura e escultura deixa de fazer sentido perante esse outro sentido, mais lato, que as palavras indicam ao espírito do espectador.
Assim, perante a ausência de representação na pintura de Mónica Capucho - perante a ausência de histórias para contar com base numa qualquer representação figurativa -, ficamo-nos com objectos onde se inscrevem palavras. Acontece que essas palavras nem sempre se dão a ver. A observação depende das condições de luz e sombra, da posição do espectador, da hora do dia. A artista pode escolher pintar as palavras numa tonalidade mais clara ou mais escura que a cor do fundo; ou pelo contrário, representá-las exactamente com o mesmo tom azul ou carmim, de modo a convocar a atenção do espectador para as decifrar. Ou seja, as palavras, na pintura de Mónica Capucho, funcionam sempre como o pormenor de outros tempos que encerrava, desvendando-o, o sentido da obra de arte.
Podemos, como é evidente, imaginar uma obra em que as palavras não tivessem sido feitas para ser lidas. Podemos imaginar uma pintura em que a artista guardasse a chave de leitura, e a partir daí a chave também do significado da obra. Conceptualmente, estas pinturas quase monocromáticas , com sugestões de divisões verticais de campos distintos, lembram a pintura de Frank Stella, e levam-nos a recordar uma das frases do minimalista Carl André a propósito dela, depois de ter afirmado que o mesmo Stella sentira a necessidade de pintar riscas:”There’s nothing else to see”. É que, de facto, o que se dá a ver é a pura materialidade do objecto tridimensional a que chamamos pintura – conjugada com o relevo, tão subtil como um pequeno pormenor, das telas que formam diversas palavras escritas.
O modo como estas palavras surgem contribui para acrescentar sentido a esta leitura da obra da artista. Numa série anterior, Mónica Capucho escolheu inscrever o nome comercial da tinta usada sobre uma superfície pintada dessa mesma cor. A obra remetia-mos assim para dois códigos diferentes: um, essencialmente visual, e o outro, do domínio da linguística (pois o nomear é o acto metafórico que está na própria raiz do nascimento da linguagem). A serialidade associada a este tipo de obras metaforiza o conceito de colecção, como reunião, catalogação, exposição e conservação de um conjunto coerente de objectos. Se este tipo de trabalho encontra paralelismos bastantes na arte contemporânea – de Lothar Baumgarten a Pedro cabrita Reis -, o sentido que a obra de Mónica Capucho tomava então necessitava de um ponto de viragem para não se tornar redundante.
Esse ponto foi alcançado agora – e pode dizer-se que, na série actual, as palavras adquirem um peso proporcional ao do trabalho matérico.
Numa série, que apresenta as medidas de 180x50x4 cm elas associam-se automaticamente, sem nexo lógico aparente, embora a artista nos diga que se trata sempre de composições. Noutra, de obras de 60x60x4 cm, apresentam-se frases curtas, como pensamentos espontâneos. Na terceira, finalmente, são afirmações mais complexas. Esta última série é formada por obras com as medidas de 140x200x4 cm, ou de 200x140x4 cm.
O moda de construção de frases e das palavras faz um apelo forte ao acaso. Por exemplo, Mónica Capucho pode partir de um texto pré – existente e escolher dentro dele uma ou mais palavras que lhe captem a atenção. Estas são depois compostas, como um jogo de cadáver - esquisito, por associação, completamente ou exclusão mútuas.
Por isso, é possível descobrir, numa dessas pinturas, uma frase que nos diz que “this painting is/directly/build with sensibility”... a sensibilidade, ou seja, mesmo aquela que parece mais mecanicamente construída. Neste processo de trabalho que, de tão preciso, lembra o de uma máquina, o corpo, o acaso, a subjectividade e a emoção irrompem sem pedir licença, porque afinal nestes começos do século XXI, já ninguém se ilude com a crença de que é possível dominar esse corpo. No pormenor do que se sente, apenas perceptivél a quem é capaz de o ver, reside todo o sentido da pintura de Mónica Capucho. Mesmo que, como aqui acontece, haja sempre algo, no fim, que permanece por dizer.
Luísa soares de Oliveira
Setembro 2003